em 25 de setembro de 2014
Uma ressalva inicial necessária:
vou expressar aqui um ponto
de vista que certamente não faz, de nenhuma forma, jus à história da
reflexão filosófica sobre o tema. Seria muita pretensão, e de toda forma algo não
factível, dadas as minhas limitações teóricas. Pois, embora reserve um grande
interesse pela filosofia, ainda tenho pouca base formal no campo.
Minha trajetória acadêmica se
deu, até aqui, nas área da Ciência da Computação, da Informação, do
Conhecimento e da Gestão. Me interesso sobretudo por teorias que procuram dar
conta do impacto da TI nas organizações e no indivíduo: i.e., pela análise das implicações da introdução progressiva de
componentes, entidades, ou melhor: “atores” não-humanos - vistos como artefatos
tecnológicos, não apenas passivos mas ativos -, que “estendem” as capacidades
de produção e criação, em nossas vidas e nas organizações e grupos sociais.
Para além da produção e da criação, a Tecnologia da Informação afeta questões comuns, tais como proteção de direitos autorais, liberdade intelectual, responsabilidade, privacidade e segurança. Muitas dessas questões são difíceis ou impossíveis de resolver.
Vamos ao tema do artigo:
Que ética para o século XXI? Que ética para o pós-humano? Com efeito, a
pergunta da filosofia, que mais importa, é:
“Como viver?”. Como viver no século XXI?
O artigo apresenta duas éticas absolutistas e uma relativista.
As duas primeiras postulam
absolutos metafísicos, que fundamentam a moral; uma é transcendente, a outra é transcendente
também, mas na imanência. Uma fundamenta seus valores na existência de um Deus,
a outra no Homem-Deus.
A essas duas éticas (transcendente
e transcendente mas imanente), contraponho, no artigo, a ética relativista. Ou
seja, uma ética sem fundamentos. Não há valor absoluto nesta ética. Todos os
valores são relativos. Uma objeção, entretanto, sempre aparece: se tudo vale
nessa ética relativista, não há nenhum valor absoluto, então se tudo vale é
porque nada vale!
Procederei em dois tempos:
(1) num primeiro momento
trato da questão “que fundamento para a moral?”
(2) em segundo momento,
argumento que o relativismo não é um niilismo. Mas é sim, uma ética que habita
uma terceira via entre, de um lado, o dogmatismo, e de outro, o niilismo.
No Brasil de hoje, em que
prepondera o niilismo político: “descrença
em tudo o que é político”; e também o niilismo moral: “cada um que salve o seu!”, o relativismo me parece uma via do meio,
um antídoto contra o dogmatismo e o niilismo.
PARTE I -
que fundamento para a moral?
Humanismo
Genericamente, o humanismo é
entendido como uma corrente intelectual do renascimento, fundada no estudo das
humanidades grega e latina que vai adotar certa valorização do homem, ao final
da chamada idade média.
Em filosofia ser humanista é
considerar a humanidade como um valor, ou até um valor supremo.
Ou seja, tem-se duas
possibilidades: (1) esse valor poderá ser considerado um valor absoluto, que se
deixa conhecer, reconhecer e contemplar; ou (2) esse valor poderá ser relativo.
Relativo a que? Relativo à história e aos desejos dos homens (nossa história e
nossos desejos), ou seja, relativa à uma certa sociedade ou civilização...
No primeiro caso tem-se o
chamado humanismo teórico, o qual
pode até ser metafísico ou transcendental, mas tende sempre a se tornar uma espécie
de religião do homem (ver: O Homem-Deus, do filósofo Luc Ferry).
No segundo caso, trata-se de humanismo prático, que não reconhece
nesse valor do humano nenhum absoluto, nenhuma transcendência. E não é mais que
uma moral, ou um guia para a ação.
No primeiro caso tem-se
uma fé: fé no humano.
No segundo caso tem-se uma
fidelidade: fidelidade aos valores humanos.
Embora semelhantes, essas
duas posições: o humanismo teórico e
o humanismo prático são bem
diferentes. Postular um anti-humanismo
teórico, em minha opinião, ajuda a não se correr o risco de,
inadvertidamente, cair-se num não-humanismo
prático.
Ora, o não-humanismo prático é a própria barbárie, ou do integrismo, ou de
uma espécie de niilismo: que é ausência completa de todo e qualquer valor.
Depois do
estruturalismo francês, o humanismo
prático é o humanismo que resta disponível. Ele diz respeito não ao que sabemos do homem, mas ao que queremos para ele (que ele continue
humano, no sentido normativo). Não há mais sujeito
de sentido – nem Deus, nem homem –, todo sentido é reduzível a algo que em
última análise não tem sentido. Como mostrou Lévi-Strauss (em um diálogo com
Ricoeur, 1963): só há sentido “na posição” (da estrutura), ou seja, “o sentido resulta sempre da combinação de
elementos que não são eles mesmos significativos”.
Resposta possível
à barbárie (o não-humanismo prático)
Trata-se de questão muito
abstrata me dirão alguns! Observação que se pode responder apontando para as
discórdias atuais e perenes no oriente médio. As lutas e gestos bárbaros que
assistimos em pleno século XXI são uma constatação concreta de um cenário abjeto
e nada abstrato. No Brasil temos o niilismo político, todo político é corrupto
(o que só beneficia os corruptos), apregoado pela grande mídia.
No caso do oriente médio, tem-se
alí um foco que pode evoluir ou não para um fanatismo bárbaro bem mais amplo,
como todos aceitam. Naquela região vive-se sob as leis de fanatismos que seguem
os mandamentos de um suposto Deus metafísico, que julga “lá de cima” a
humanidade.
Ou seja, postulo no artigo,
um anti-humanismo teórico como
salvaguarda da possibilidade de cair num não-humanismo
prático. Com efeito, acredito que esta posição (a de um anti-humanismo teórico) seria a de um
humanismo mais engajado, menos idealista e mais mobilizador.
Nesse posicionamento (de um anti-humanismo teórico), os postulados “Ama a Deus sobre todas as coisas” (das religiões
monoteístas do livro) ou “Ama o Homem
sobre todas as coisas (como um absoluto, como um Homem-Deus)”, tornam-se
então o postulado: “Ama a verdade sobre
todas as coisas (e isso aceitando também que nunca a alcançaremos
absolutamente, totalmente)”.
Porém esse posicionamento
deve aceitar que, embora exista como absoluto, a verdade não é um Deus, ou
seja, ela não julga!
Resumindo, postulo um “anti-humanismo teórico” porque não
aceito que o humano funda a moral humana (se fundasse então teríamos um humanismo teórico). Se aceitamos que o
humano não funda a moral, então temos um anti-humanismo
teórico.
Então o que funda
a moral?
Deus seria um fundamento
possível para a moral, mas não buscamos um fundamento possível (o que seria, no
limite, uma contradição "nos termos”, como o “quente-frio”, p.ex.).
Buscamos sim um fundamento cognoscível ("conhecível").
Deus fundaria a moral, como a
conjunção possível entre a verdade e o bem (Deus faz nossos valores serem não
apenas os “bons valores”, mas os “valores verdadeiros”. E nesse caso é preciso
postular a existência do bem como um absoluto (o que equivale a hypostasiar o bem como um Bem, com “B”
maiúsculo), o que é problemático por várias razões, mas sobretudo diante de
tanto mau (ou sofrimento que há no universo). É porque o Bem não existe,
absolutamente, ou seja, não existe por si como uma verdade, que é nosso dever
lutar para que ele valha, para nós, na medida em que o amarmos.
A verdade, por ela só, poderia
fundar a moral? Considero que a verdade é um absoluto, mas ela não julga.
Então, por consequência, não pode fundar, já que todo fundamento é “de direito”
(e não “de fato”), no sentido de que um fundamento garantiria o "valor de
um valor”.
Nesse cenário, onde não se
reconhece o Bem absoluto e a verdade não julga. Então toda moral só
pode ser autônoma, imanente, e desprovida de um fundamento. Uma moral não pode
ser transcendente, nem fundada. O que não a impede de existir, por suas
origens.
O que não a impede,
inclusive, de ser heterônoma, pois a moral é do indivíduo, mas também do grupo
social a que pertence tal indivíduo.
Ou seja, se a moral não tem
um fundamento crível, ela tem, entretanto, origens. E são várias origens: a
vida, a razão, a sociedade, a história. Todas essas “coisas” juntas têm como
consequência a universalização da moral, mas não a sua absolutização.
Toda moral é, logo, relativa ao indivíduo, ou à um grupo de indivíduos,
uma sociedade (a moral vivida em grupo
é o que se chama política).
Que
espiritualidade?
Para um filósofo, mas para um
crente também, “acreditar em Deus”, pode ser considerado como “acreditar na
verdade”. Qual é a diferença?
A diferença é que o filósofo admite
sempre que a verdade não julga, e não pode julgar. Que a verdade está para além
do bem e do mal, ou para aquém do bem e do mal (como eu preferiria dizer).
O filósofo fala então da
verdade. Mas ela não é um Deus. Não é também o homem-Deus do humanismo teórico.
Que espiritualidade? A
espiritualidade é a vida do espírito, em geral. Em particular é habitar a
relação entre nosso tempo finito e a eternidade, nossa pequenez física e o infinitamente
grande universo, enfim: nossa relatividade e o absoluto do Todo.
Com relação às virtudes
teologais do cristianismo: fé, esperança e amor/caridade, não se trata de ter fé no homem ou fé em Deus, mas de ser fiel aos valores do humanismo, do cristianismo:
é o que é um humanismo prático.
Não se trata de ter “esperança”
no homem ou em Deus, mas trata-se de agir. De construir o reino.
Conclusão
Então concluo que a moral é
sempre relativa, nunca absoluta. Pelo menos não do ponto de vista metafísico.
Já do ponto de vista fenomenológico (Kant tinha razão) ela é
vivida, na imaginação do indivíduo, como um absoluto: como um imperativo
categórico. Com efeito, aquilo que não se universaliza, EM GERAL, não é moral.
Se a mentira e o assassinato fossem morais, ambos tenderiam a não existiriam
mais. A mentira deixaria de ser mentira porque todos mentiriam. A sociedade
deixaria de existir, porque todos se matariam.
Dessa forma, não sendo mais
do que um universal, i.e., um
horizonte de humanidade possível (e não algo que está atrás de nós, como
garantia, abaixo de nós como fundação ou mesmo dentro de nós como um
imperativo), essa moral não escapa à casuística.
Todo "caso moral”,
sobretudo os mais decisivos (aborto, pena de morte, casamento homossexual etc),
deve e pode ser considerado e discutido.
Tudo está sobre a mesa dos
homens, dos indivíduos que decidem. Não há mais fundamento absoluto para a
moral. Toda moral é relativa, frágil, e sem sanção absoluta.
Mesmo a razão livre não
constitui um fundamento (como queria Kant). Só há razão na proporção do desejo
de razão. A razão não é um absoluto, não vale por si mesmo. Senão o homem,
enquanto ser racional e livre, seria um absoluto. A vida seria um absoluto. Mas
quem prova que a vida tem razão?
Pode-se contrapor contudo: “se
a moral é relativa, então tudo vale, e se tudo vale nada vale”. Vem então a
pergunta: essa posição relativista do anti-humanismo teórico, ou humanismo
prático, implica num niilismo?
PARTE II - o
relativismo é um niilismo?
Que todo valor seja relativo, não prova que tudo valha.
Que todo valor seja relativo, não prova que tudo valha.
Porém, como
valores não são seres, nem ideias em si, o relativismo é um niilismo
ontológico.
Mas, como os
valores existem realmente, e para nós (eles nos fazem agir), esse niilismo
ontológico vai junto com um relativismo prático.
Um valor não é uma
verdade, é o objeto de um desejo, não de conhecimento; Que uma coisa ou outra
me pareça boa ou má, vai depender do desejo que tenho por ela. Mas que ela seja
verdadeira, não. Nietzsche versus
Spinoza: o pensamento deles se encontra no relativismo normativo (quanto aos
valores), mas se opõem no racionalismo (quanto à verdade, ou à razão).
A verdade é um
valor? Claro, mas apenas se nós a julgamos boa. Assim, com efeito, a verdade é
um valor para quase todos os humanos: “todos
os homens amam a verdade”, dizia Santo Agostinho, porque ninguém, mesmo os
mentirosos, gostam de ser enganados. Mas não é porque ela é uma verdade que ela
vale; não é porque um valor é verdadeiro que ele vale.
Filosofia cínica, disjunção
de ordens: o valor de uma verdade depende do desejo que temos por ela, mas
sua verdade não. Todo valor é subjetivo (inclusive a verdade como valor);
nenhuma verdade é subjetiva.
O valor é causa de
uma ação, não é algo que se contemple em si, mas apenas indiretamente através
da contemplação de uma ação.
Um valor não é
também um puro “nada” ou uma ilusão. Um valor vale verdadeiramente, ao menos
para nós, já que é verdade que nós o desejamos.
É verdade que eu desejo, mas meu desejo não é
uma verdade.
O que há de ilusão
em nossos valores não é o que eles valem, mas o sentimento que temos, quase
inevitavelmente, de que são absolutos. Mas só há valor absoluto para e pelo
desejo. Trata-se de um absoluto prático: o que eu quero absolutamente, quer
dizer, de forma incondicional, inegociável. Mas não porque existiria em si. Mas
porque é indissociável do meu desejo de viver e agir humanamente.
Por que seria
necessário que a justiça existisse em si, absolutamente, para que eu deseje a
justiça (ou ame a justiça)?
É antes o
contrário: se ela existisse, ela não precisaria de nós e nós seríamos menos
responsáveis por ela. Menos responsáveis por torna-la real, já que ela
existiria por si mesma. Mas não é assim. Não é porque a justiça é boa, em si
mesma, que a buscamos, nem porque ela existe nos submetemos a ela. É porque nós
a desejamos que ela é boa (para nós). Razão a mais para deseja-la.
É porque ela não
existe, por si, que é preciso faze-la.
O niilismo é a
filosofia da preguiça ou do vazio, do nada. O relativismo, a filosofia do
desejo e da ação.
Enfim, como eu dizia no
início, no Brasil de hoje, em que prepondera um niilismo político: a descrença
em tudo o que é político; mas também aumenta o niilismo moral: do “cada um que
salve o seu!” nos restam as palavras lúcidas
do filósofo André Comte-Sponville:
“o
relativismo é como que uma via do meio, contra o dogmatismo e o niilismo.
Contra
o dogmatismo: a lucidez, o relativismo e a tolerância.
Contra
o niilismo: a coragem e o amor.”
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