Distante do racionalista Sam Harris mas na mesma sintonia de pensamento, o místico Pierrre Weil denominou "Mutantes"[1] as pessoas que experimentam e vivem valor e verdade como uma coisa só. Nesse livro ele discute as etapas evolutivas da consciência humana, dividindo o processo de hominização em três fases. Num extremo está o ser Estagnante, no outro o ser Iluminado. No meio, entre esses dois extremos, está o ser Mutante. O ser mutante seria como uma ponte para um novo paradigma existencial (cf. o conceito de hominescência de M. Serres), onde desapareceria totalmente a ilusão metafísica das separações ser/mundo, sujeito/objeto, valor/verdade etc. e suas consequências (nefastas?) para o homem. Caminha-se então na trilha que vai do pensamento metafísico para o dialético ou pragmatista (de Kant para Dewey[2]).
Esses fenômenos formam um todo. São dificilmente separáveis uns dos outros, mas podem ser distinguidos por nossa inteligência analítica. Tais fenômenos são todos interessantes, objetos de estudos aprofundados de uma nascente disciplina, a Filosofia da Informação (vide L. Floridi).
Quero, neste post, me ater a apenas um deles, a Sabedoria. Como definição do termo, esta me parece razoável: sabedoria seria o "máximo grau de lucidez, presente no máximo grau de felicidade" (C. Sponville). Somos capazes de experimentar algo assim? Estaria a humanidade, em sua evolução, trilhando esse percurso? Seria possível alcançar uma sabedoria que nos salve da auto-destruição, da aplicação da tecnologia sem preocupação ou reflexão ética?
Alguns filósofos disseram, e outros ainda dizem, que somos capazes disso, e sem cair no obscurantismo. Precisaríamos, contudo, para alcançar a sabedoria, desenvolver no caminho uma certa espiritualidade. Espiritualidade que pode até prescindir da religião, mas dificilmente poderia prescindir da comunhão em determinados valores. Leio que precisaríamos aprender mais sobre o Amor, e assim aprendermos a amar mais e a amar melhor. "Ciência é conhecimento organizado, sabedoria é vida organizada" (I. Kant). E é preciso ir além da experiência já que "esta não nos ensina sobre as essências das coisas" (B. Espinoza, em dito racionalista).
Embora a religião, baseada que está na esperança, possa atrapalhar o desenvolvimento de uma espiritualidade focada mais fortemente no amor e na fidelidade (e não na fé e na esperança), muitos ainda encontram nela o locus de possibilidade único para o desenvolvimento de qualquer vida espiritual. Ou daquilo que normalmente em sociedade nomeia-se 'vida espiritual'.
Acompanhando o pensamento de Sponville, uma espiritualidade laica não se fundamenta na esperança, que teima em nos desviar a vida do momento presente. Deve-se esperar por uma outra vida que não esta, prendendo-se ao passado ou ao futuro, mas não no presente, no agora. Esperar aquilo que não depende de si? qual o sentido? Mas daquilo que depende de si, para que esperar? o melhor seria agir. Fé ou fidelidade? Se o reino é para ser experimentado aqui e agora, para que ter fé?
A religião ocidental possui uma concepção acerca da eternidade que pode estar enganada. Uma eternidade como tempo linear, que não acaba... Outra concepção poderia ser a de eternidade como ausência do tempo. Apenas o presente existiria. O presente que se mantém presente. Pode-se pensar: "no agora, o passado não existe mais, e o futuro ainda não existe". Resta então apenas o momento presente, com a memória presente do passado e com os projetos que virão no futuro, apenas os que dependem de mim.
Mas é caminho difícil. Na maior parte das vezes em que estamos conscientes nos pegamos presos ao futuro, a esperar o que não depende de nós; ou presos ao passado, porque não conseguimos resolver nossas contas com ele (arrependidos, frustrados).
Mas mesmo assim, esse poderia ser o destino do ser humano, uma evolução em direção à sabedoria? (cf. F. Hegel) Mesmo que seja possível, uma coisa parece clara: se nesse percurso ou evolução, que passa também por uma natural e forte humanização da tecnologia (i.e. sua apropriação definitiva pela Cultura), pararmos no patamar ou nível do conhecimento, e se esse patamar nos bastar, então talvez não sobrevivamos mesmo ao Século XXI. Não desenvolveremos nossa dimensão espiritual prática. Daí a premência da ética na ciência hoje, mas de uma ética não-Platônica. Uma ética desmstificada, que desafie a tradição das religiões monoteistas.
Como Sponville, também acredito que é preciso encontrar uma espiritualidade sem dogmas, laica. Paradoxalmente, a igreja pode nos abrir ou fechar para a espiritualidade. A espiritualidade nada mais é do que a vida do espírito em nós, ou seja a experiência da consciência em nós. É a relação entre o finito em nós e o infinito do universo, do temporal em nós com o eterno (ou atemporal). Se, por acaso, nos sentirmos fechados por dogmas, devemos nos libertar. Nos libertar dos conceitos incutidos muitas vezes pela igreja ou pela tradição. Infelizmente, em sua maior parte, essas tendem a verbalizar ideologicamente a mensagem de Cristo.
Com efeito, parece premente hoje buscarmos uma espiritualidade que nos previna, tanto contra o fanatismo quanto contra o niilismo, mas que não nos jogue no obscurantismo. No post Falando de Amor escolhi, para me instruir sobre o tema do Amor, as ideias de Sponville que versam sobre a história contada no livro Banquete de Platão - ou, "a propósito do Amor".
Buscando subir na pirâmide e alcançar algum grau de sabedoria, parece que o conhecimento não é mais suficiente ou pouco importa. Muito menos a informação ou menos ainda o dado (parece haver um fosso que os separa da sabedoria). Além de um determinado limite, os nossos problemas individuais ou coletivos não parecem poder ser resolvidos com mais reflexão, mais racionalidade, com mais pensamento ou pensando mais fortemente (no sentido de um subjetivismo cartesiano, ou do racionalismo).
Talvez, na maior parte dos casos isso possa até atrapalhar, pois o mistério mais profundo do Ser não nos é dado conhecer, mas apenas sentir, experimentar (caberia reflexão sobre como a filosofia de Merleau-Ponty, fenomenologia da percepção, que pode ser útil aqui). Nesse sentido, pode-se citar Inácio de Loyola quando diz: "Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir, experimentar e saborear todas as coisas internamente".
Talvez essas experiências possam ser desenvolvidas a partir de um melhor entendimento acerca do papel do amor em nossa existência. Coração e razão não são duas coisas diferentes, mas formam um todo (que na modernidade Kant separou em suas obras críticas). Sente-se que é o coração que abre o Ser à razão, ao entendimento. A razão seria a guia, mas o amor é o motor, vem primeiro.
Mas, voltando ao início, em que contribui a TI para o desenvolvimento de uma espiritualidade necessária à própria reflexão sobre sua evolução e nossa evolução?
Alguns elementos para responder poderiam ser: imaginar como a Internet e a Web quebram os limites do tempo/espaço, e ideias (memes) iluminadas, de pessoas mais sábias, de raciocínio claro, passam a ter divulgação universal e imediata.
Na medida em que a Web vai ficando mais e mais semântica, não apenas essas ideias estão à disposição, como estão relacionadas entre si formando estruturas, grafos de conhecimento. Nesses novos sistemas de conhecimento, as ideias competem entre si, já que todas as ideias são imediatamente relacionadas pelos mecanismos de navegação, busca e recuperação de informação cada vez mais poderosos.
Claro que o mal está também presente entre nós. Antes de nascer, ainda no ventre de nossa mãe fazemos parte do Todo. Ao nascer somos separados desse todo, ganhamos aos poucos uma consciência. Com esse movimento nos tornamos então expostos ao mal, assim como ao bem. Pecar seria escolher o mal. É porque o mal existe, em cada um de nós, que precisamos nos esforçar e participar da construção do bem. Abracemos a glória e não a miséria humana em nós (B. Pascal).
Precisamos espalhar e alargar a comunidade dos "Mutantes" de Pierre Weil (Universidade da Paz) e tantos outros sábios; mas este é outro assunto.
[1]Pierre Weil. “Os Mutantes – Uma Nova Humanidade para um novo milênio” (Ed. Verus).
[2]Richard Rorty. “Kant contra Dewey: a situação atual da filosofia moral” (Filosofia como Política Cultura, ed. Martins Fontes).