Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
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Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

sábado, 31 de julho de 2010

Como ser um conservador-liberal-socialista

Por Leszek Kolakowski.

Lema: "Por favor, um passo à frente para trás!" Essa é a tradução aproximada de uma solicitação que um dia eu ouvi em um bonde em Varsóvia. Proponho-me a fazer dela o slogan de uma poderosa Internacional, que não existe.

Um conservador acredita:

1. Que na vida humana nunca houve e nunca haverá melhorias que não sejam pagas com deteriorações e males, assim, ao considerar cada projeto de reforma e melhoria, o seu preço tem de ser avaliado. Dito de outra forma, inúmeros males são compatíveis (ou seja, que podemos sofre-los de forma abrangente e ao mesmo tempo), enquanto que muitos bens são limitados ou anulam-se uns aos outros e, portanto, nós nunca vamos aproveitá-los completamente, ao mesmo tempo. Uma sociedade em que não há igualdade nem liberdade de qualquer tipo, é perfeitamente possível, mas uma ordem social que combina a igualdade total e a liberdade não o é. O mesmo se aplica à compatibilidade do planejamento e do princípio da autonomia, a segurança e o progresso técnico. Dito de outra maneira, não há final feliz da história humana.

2. Que nós não sabemos até que ponto várias formas tradicionais de vida social - família, os ritos, a nação, as comunidades religiosas - são necessários para tornar a vida tolerável na sociedade ou mesmo possível. No entanto, não há razão para acreditar que a destruição dessas formas ou por expor sua irracionalidade, possamos aumentar nossas chances de felicidade, paz, segurança e liberdade. Não podemos saber o que ocorreria se, por exemplo, a família monogâmica fosse revogada, ou se o honrado costume de enterrar os mortos cedesse lugar à reciclagem racional de cadáveres para fins industriais. Seria aconselhável, no entanto, esperar o pior.

3. Que a idéia fixa da filosofia do Iluminismo - a saber, que a inveja, vaidade, ganância e agressão são causadas pelas deficiências das instituições sociais e que desaparecerão uma vez que estas instituições forem reformadas - não só é completamente inverossímil e contrária à experiência, mas extremamente perigosa. Como estas instituições teriam podido existir se fossem tão contrárias à verdadeira natureza do homem? A esperança de que podemos institucionalizar fraternidade, amor e altruísmo é já ter um plano confiável para o despotismo.

Um liberal é convicto de que:

1. Essa idéia antiga de que a finalidade do Estado é a segurança continua a ser válida. Ela mantém o seu valor mesmo se a noção de "segurança" for expandida para incluir não só a protecção de pessoas e bens por meio da lei, mas também todo um sistema de seguro: que as pessoas não deveriam morrer de fome se encontram-se desempregadas, que os pobres não devem ser condenados à morte por falta de assistência médica, que as crianças devem ter acesso gratuito à educação - todos estes também devem fazer parte da segurança. No entanto, a segurança nunca deve ser confundida com a liberdade. O Estado não garante a liberdade de ação regulamentando vários aspectos da vida, mas sim não fazendo nada. Na verdade, a segurança só pode ser expandida às custas da liberdade. Em todo caso, fazer as pessoas felizes não é a função do Estado.

2. Que as comunidades humanas são ameaçados não só pela estagnação, mas também pela degradação quando eles são tão organizados que não há mais espaço para a iniciativa individual e a criatividade. O suicídio coletivo da humanidade é concebível, mas um formigueiro humano permanente não é, pela simples razão de que não somos formigas.

3. Que é altamente improvável que uma sociedade na qual todas as formas de competitividade tenham sido aniquiladas continuaria a ter o estímulo necessário para a criatividade e progresso. Mais igualidade não é um fim em si, mas apenas um meio. Em outras palavras, não há sentido em lutar por mais igualdade, se os resultados forem apenas o nivelamento por baixo daqueles que estão em melhor situação, e não a elevação dos desfavorecidos. Perfeita igualdade é um ideal auto-destrutivo.

Um socialista acredita que:

1. Sociedades em que a busca do lucro é o único regulador do sistema produtivo são ameaçadas por catástrofes - talvez mais graves - que sociedades em que o lucro tenha sido totalmente eliminado da regulação das forças de produção. Há boas razões para que liberdade de atividade econômica deva ser limitada por razões de segurança, e para que o dinheiro não deva automaticamente produzir mais dinheiro. Mas a limitação da liberdade nesse caso deve ser compreendida tal como, e não considerada como uma forma superior de liberdade.

2. É absurdo e hipócrita concluir que, simplesmente porque uma sociedade perfeitamente sem conflitos é impossível, todas as formas existentes de desigualdade sejam inevitáveis e que todas as formas de fins lucrativos justificadas. O tipo de pessimismo antropológico conservador que conduziu à convicção surpreendente de que um imposto de renda progressivo era uma abominação desumana é o mesmo, ou tão suspeito quanto, o tipo de otimismo histórico em que o Arquipélago Gulag foi baseado.

3. A tendência a submeter a economia a importantes controles sociais deve ser incentivada, mesmo que o preço a ser pago seja o aumento da burocracia. Tais controles, porém, devem ser exercidos no âmbito da democracia representativa. Assim, é essencial planejar instituições que combatam a ameaça à liberdade que é produzida pelo crescimento desses controles eles mesmos.

Tanto quanto eu posso ver, este conjunto de ideias reguladoras não é auto-contraditório. E, portanto, é possível ser um conservador-liberal-socialista. Isto equivale a dizer que essas três denominações particulares já não são (opções) mutuamente exclusivas.

Quanto à poderosa Internacional, que mencionei no início - ela nunca vai existir, porque não pode prometer às pessoas que elas vão ser felizes.

Leszek Kolakowski, Modernity on Endless Trial, University of Chicago Press, 1990.

terça-feira, 13 de julho de 2010

A invenção da “planitude”

Por Carlos Vogt
A Terra não é plana e isso a gente sabe faz alguns séculos. Ao contrário, é plena, densa redonda e “azul como uma laranja” segundo o poeta francês Paul Eluard. A cadelinha Laika, Yuri Gagarin e o Sputinik nos ajudaram a transformar o conceito em percepção sensível e metafórica dessa plenitude azul provocada pelo efeito de luz e cor da massa líquida do planeta, vista ao longe, à distância sideral do que é possível ver e imaginar, no tempo do espaço-tempo tocado como as cordas de um instrumento feito só de buracos negros e minhocas incomensuráveis.

A Terra não é plana, o universo se expande, as teorias para explicá-lo se esticam e tangem os limites da universalidade do que existe, percebido como existindo em aldeias de “planitude” global desadensadas de memória e carregadas de acúmulos flexíveis de informações.

Três projetos de impacto marcaram o século XX: o que levou o homem à Lua, o que o havia levado à bomba atômica e o que o trouxe de volta, pelo Genoma, à tentativa de compreender os segredos bioquímicos de sua própria vida.

Antes, no começo do século, Freud havia apontado as sucessivas quedas do homem, que, parafraseadas, poderiam nos levar a uma espécie de paradoxo do conhecimento, cujos elementos de composição e de articulação seriam os seguintes: o homem tem uma primeira queda quando é expulso do Paraíso, pelo pecado do conhecimento e pelo conhecimento do pecado; tem uma segunda queda, quando, pelo conhecimento, o heliocentrismo substitui a visão geocêntrica do sistema planetário; uma terceira queda o tira da escala de criatura humana por criação divina para colocá-lo na cadeia evolutiva das espécies; cai novamente, desta vez do centro da história, pelas explicações marxistas da economia de suas relações em sociedade; cai, por fim, de si mesmo, ao ser deslocado de seu eu consciente para as forças inconscientes que parametrizam os seus comportamentos, os seus valores e determinam as suas escolhas e opções quando não as próprias formas de como o sujeito é escolhido, apresentado e representado no palco de suas desilusões.

A primeira queda é mítica, a segunda é cósmica, a terceira é biológica, a quarta é histórica e a quinta é psicanalítica.

Caso faça sentido a saga de seus tombos, a conformação do paradoxo está em que quanto mais ele mergulha no conhecimento de suas profundezas e na profundidade do conhecimento de si e do universo que o circunscreve e que ele escreve, mais o homem é emergido para a superfície plana de sua deserdação e para “planitude” desértica de sua solidão solidária.

Por isso também é que o conhecimento é comovente, como atesta o livro "Dez teorias que comoveram o mundo", de Leonardo Moledo e Esteban Magnani, publicado no Brasil pela Editora da Unicamp, em 2009, em tradução do original argentino, de 2006.

Escolhidas pelos autores estão o heliocentrismo, a gravitação universal, a teoria da combustão, o evolucionismo, a teoria atômica, a teoria da infecção microbiana, a relatividade, a teoria da deriva continental, a genética e o Big Bang.

Qual seria, então, a forma mais acabada do paradoxo dessa comovente história do conhecimento?

A meu ver, seria simples e transitória como é definitiva e complexa a provisoriedade da vida. Conhecer é um ato de coragem que nos leva de pergunta em pergunta ao confronto de alternativas: ou recusamos o conhecimento como dado, ou nos aventuramos no que nos é dado a conhecer. Neste caso, ainda que a biblioteca de nossos conhecimentos seja “periódica”, ela será também “ilimitada” como enunciou Borges sobre a Babel; no outro, seremos só definitivos e limitados pelos muros abertos do labirinto de areia do deserto de informações.

Há, assim, pelo menos, dois modos de conhecer: aquele que nos abandona e nos perde na “planitude” da informação acumulada, tornando-nos sábios-sabidos; aquele que, mantendo-nos em estado de ignorância crítica ─ o que chamei em outro artigo de ignorância cultural (“Ciência e bem-estar cultural”) ─, nos leva a desconfiar da miragem benfazeja do conhecimento dado e nos põe em constante estado de alerta para o que vem pronto, plano e amiúde, vale dizer, os monumentos instantâneos das certezas passageiras.

Neste caso, é muito provável que todos não sejamos sábios; é certo, contudo, que teremos sabedoria. A sabedoria paradoxal que quanto mais aumenta, mais nos faz crescer em conhecimento e mais nos diminui o conforto passivo das situações objetivas e subjetivas de cada conquista ética e cultural.

Nesse sentido, conhecer é erguer-se para cair, se a saga do conhecimento seguir acompanhada de novas e sucessivas quedas.

Se o paradoxo não evita a queda, ajuda a evitar, contudo, a “planitude” monumental do ruído da informação.