Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
"
Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

sábado, 31 de março de 2012

O Conhecimento segundo a Filosofia da Informação

A metafísica é o estudo do que há, do que existe. Os antigos descreviam-na como o problema do ser.
Não se pode fazer metafísica sem conhecer como se pode conhecer (questão epistemológica) o que há para se conhecer (questão ontológica). Ou seja, em que condições mínimas pode-se afirmar que se conhece algo?
A questão epistemológica de conhecer (saber) como conhecemos é uma questão fundamentalmente circular. A questão ontológica de conhecer algo sobre o que existe cria ainda um outro círculo, porque aquele que conhece é ele próprio uma das coisas que existem para ser conhecidas (auto-conhecimento).

Entretanto, a princípio nada indica que essas definições circulares precisam ser viciosas. Elas podem simplesmente constituir um conjunto coerente de idéias usadas para descrever a nós mesmos e o mundo externo. Se as descrições são logicamente válidas, ou verificáveis ​​empiricamente, conclui-se que se está aproximando da "verdade" sobre as coisas, adquirindo conhecimento.

É necessário então descrever o conhecimento em si - como uma coisa existente em nossas mentes e no mundo externo. A Filosofia da Informação faz isso baseando-se exclusivamente na noção abstrata, mas quantitativa de informação.

A informação é armazenada e codificada em estruturas. Estruturas no mundo constroem-se seguindo leis naturais, incluindo as leis físicas e biológicas. Estruturas na mente são parcialmente construídas por processos biológicos e parcialmente construídas pela inteligência humana, que é livre, criativa e imprevisível.

Conhecimento é informação gerada e armazenada na mente e nos artefatos humanos como histórias, livros e computadores interconectados. Conhecimento é informação acionável que forma a base para pensamentos, ações e crenças.

Conhecimento inclui toda a informação cultural criada pelas sociedades humanas. Também inclui as teorias e experimentos dos cientistas, que colaboram para estabelecer o nosso conhecimento do mundo externo. O conhecimento científico é o que mais próximo está de ser independente de qualquer mente humana, embora seja ainda dependente de uma comunidade aberta de inquiridores (sociedade aberta de K. Popper).

Para além da correspondência, do isomorfismo, do mapeamento um-para-um, entre as estruturas de informação (e processos) no mundo e as aquelas representativas dessas estruturas e funções na mente, a filosofia informação afirma que temos conhecimento pessoal ou subjetivo quantificável do mundo.

Para além do acordo (de novo uma correspondência ou isomorfismo) entre a informação nas mentes de uma comunidade aberta de investigadores que procuram as melhores explicações para os fenômenos, a filosofia da informação reivindica ainda que temos conhecimento inter-subjetivo quantificável de outras mentes e do mundo externo a elas. Este é o mais perto que chegamos do conhecimento "objetivo", e conhecimento dos objetos - "coisas em si" de Kant.

O conhecimento historicamente tem sido identificado pelos filósofos com a linguagem, a lógica e as crenças humanas. Epistemólogos, desde o Theatetus de Platão e dos Analíticos posteriores de Aristóteles aos filósofos da linguagem contemporâneos, identificam o conhecimento com as declarações ou proposições que podem ser logicamente analisadas ​​e validadas.

Especificamente, a epistemologia tradicional define o conhecimento como "crença verdadeira justificada". Crenças subjetivas são geralmente expressas em termos de proposições. Por exemplo,

     S sabe que P se e somente se
     (i) S acredita que P,
     (ii) P é verdadeira, e
     (iii) S está justificado em crer que P.

Na longa história do problema do conhecimento, todos essas três condições (elas mesmas formas de conhecer) revelaram-se muito difíceis para os epistemólogos. Entre as razões ...

(i) Uma crença é um estado mental interno que está para além da compreensão plena por parte de observadores externos especialistas. Mesmo o sujeito ele mesmo tem limitado acesso imediato a tudo o que sabe ou acredita. Por uma reflexão mais profunda, ou pela consulta de fontes externas de conhecimento, ele pode "mudar de idéia". Ou seja, revisar seus estados doxásticos.

(ii) A verdade sobre qualquer fato no mundo é vulnerável ao ataque cético ou sofista. O conceito de verdade deve ser limitado a usos em sistemas lógicos e matemáticos de pensamento. "Verdades" no mundo real/empírico são sempre falíveis e passíveis de revisão à luz de novos conhecimentos.

(iii) A noção da justificação de uma crença pelo fornecimento de razões é vaga, circular ou uma regressão infinita. Que razões podem ser dadas de que as razões elas mesmas não tem outras razões que as justifiquem? Em vista de (i) e (ii) que valor tem uma "justificação" que é falível, ou pior ainda, falsa?

(iv) Epistemólogos tem estudado principalmente crenças pessoais ou subjetivas. Temendo a concorrência com as ciências empíricas e seus métodos para o estabelecimento do que seja conhecimento, eles enfatizam que a justificação deve ser baseada em razões internamente acessíveis ao sujeito. Alguns descrevem erradamente como "externas" crenças inconscientes de um sujeito ou crenças indisponíveis para a memória imediata. Estas são apenas inacessíveis, e talvez apenas temporariamente.

(v) A ênfase na lógica tem levado alguns epistemólogos à alegação de que o conhecimento é fechado sob implicação estrita (ou material). Isto assume que o processo do conhecimento ordinário é informado pela lógica, em particular, que

        (fechamento) Se S sabe que P e P implica Q, então S sabe que Q.

Porém, nós só podemos dizer que S está em uma posição para deduzir Q, se ele é treinado em lógica.

Assim, não é surpresa que os epistemólogos falharam em todos os esforços para dar ao conhecimento uma base sólida, muito menos estabelecer o conhecimento como certeza apodítica, como Platão e Aristóteles esperavam e René Descartes achou que ele tinha estabelecido, para além de qualquer dúvida razoável.

Talvez exagerando a ameaça da ciência como um método comprovadamente mais bem sucedido para o estabelecimento do que seja o conhecimento, os epistemólogos esperavam se diferenciar e preservar sua abordagem filosófica própria. Alguns sustentaram que o objetivo do positivismo lógico (por exemplo, Russell, primeiro Wittgenstein e o Círculo de Viena) que a análise filosófica deveria fornecer um fundamento normativo à priori exclusivamente baseado no conhecimento científico empírico.

Argumentos lógicos positivistas para o caráter não-inferencial auto-validativo de percepções lógicas atômicas tais como "vermelho, aqui, agora" tenham talvez levado alguns epistemólogos a pensar que as percepções pessoais podem justificar diretamente algumas crenças "fundacionistas".

O método filosófico de análise lingüística (Filosofia da Linguagem, inspirada no segundo Wittgenstein) não tem conseguido muito mais. É pouco provável que o conhecimento de qualquer tipo seja redutível simplesmente à análise conceitual cuidadosa de frases, declarações e proposições.

A Filosofia da Informação olha mais profundamente, para além da superfície das ambigüidades da linguagem.

A Filosofia da Informação distingue pelo menos três tipos de conhecimento, cada um exigindo sua própria análise epistemológica especial:

     - Conhecimento subjetivo ou pessoal, incluindo introspecção e intuição, bem como as comunicações com e percepções de outras pessoas e do mundo externo.
     - Conhecimento comunal ou social das criações culturais, incluindo ficção, mitos, convenções, leis, história, etc
     - Conhecimento de um mundo físico externo, independente de uma mente.

Nos passos da mecânica quântica, interpreta-se que quando uma informação é armazenada em uma estrutura, seja no mundo, nos artefatos humanos, ou numa mente, dois processos físicos fundamentais ocorrem. O primeiro é um colapso de uma função de onda* da mecânica quântica. O segundo é uma diminuição local da entropia correspondente ao aumento da informação. A entropia que sobra deve ser transferida para longe para satisfazer a segunda lei da termodinâmica.

Estes processos de nível quântico são suscetíveis ao ruído. A informação armazenada pode ter erros. Quando a informação é recuperada, é novamente suscetíveis ao ruído, que pode adulterar o conteúdo da informação. Em ciência da informação, o ruído é geralmente o inimigo da informação. Mas um pouco de ruido pode criar liberdade, uma vez que é a fonte de novidades, de criatividade e invenção, e de variação no pool genético biológico.

Sistemas biológicos têm mantido e aumentado o seu conteúdo invariável de informação ao longo de bilhões de gerações. Nós (humanos) aumentamos nosso conhecimento do mundo exterior, apesar da incerteza lógica, matemática e física que persistem sobre ele. Ambos, sistemas biológicos e homens fazem-no em face do ruído aleatório, trazendo a ordem (ou cosmos) ao caos. Ambos fazem-no com a detecção de erros e o uso de esquemas sofisticados de correção que limitam os efeitos do acaso. O esquema que usamos para corrigir o conhecimento humano é a ciência, uma combinação de teorias livremente inventadas e experiências adequadamente determinadas.


*Na mecânica quântica, o colapso de uma função de onda (também chamado de colapso do vetor de estado ou redução do pacote de ondas) é o fenômeno em que uma função de onda inicialmente em uma superposição de vários diferentes possíveis eigenstates (valor próprio ou autovalor) - parece reduzir a um único dos estados após interação com um observador. Em termos simplificados, é a redução das possibilidades físicas em uma única possibilidade como pode ser vista por um observador. É um dos dois processos pelos quais os sistemas quânticos evoluem no tempo, de acordo com as leis da mecânica quântica como apresentados por John von Neumann.

Reflexões sobre estar desconectado equivaler às vezes a "estar no inferno".

Essa palestra do filósofo L. Floridi explica aspectos de algo que ouvi outro dia: de que "estar desconectado hoje, especialmente na escola, faculdade, universidade, é pelo menos um pouco como estar no "inferno", na tristeza, na baixa de potência"; pelo menos quando esse "estar" desconectado resulta de uma restrição tecnológica, exclusão digital, i.e. de uma imposição ao indivíduo. Pois é claro que a pessoa é livre para escolher estar ou não em um meio-ambiente exclusivamente, ou mais ou menos, natural e limitado em relação à tecnologia ou culturalmente (assumindo-se uma divisão ontológica entre cultura e natureza).

Fato é que, de 20 anos para cá, nosso meio ambiente vem mudando cada vez mais rapidamente com as TICs. Se aceito o pensamento de Heidegger apresentado abaixo, esse novo meio-ambiente também nos transforma. Ele pode nos dizer fortemente algo sobre nós mesmos. Por exemplo, podemos nos descobrir como "inforgs", acrônimo usado por L. Floridi para designar "organismos informacionais". 
Vou tentar me basear no pensamento de Heidegger para fundamentar melhor o que eu quis dizer com a brincadeira do "inferno" a que me referi acima. Pois, até onde eu pude entender, esse filósofo tentou mostrar, em sua obra "Ser e Tempo" o que é o próprio do Ser do ser-humano (e com isso fundamentou boa parte do existencialismo do Sec XX, influenciando pensadores como H. Arendt, J. P. Sartre, Merleau-Ponty, P. Ricoeur, M. Levinas e incontáveis outros desse mesmo peso). 
Para tanto ele partiu metodologicamente de uma fenomenologia profunda do Ser. Ele se pergunta para sí mesmo "o que é o Ser"? vai então anotando suas impressões, como prescreve a fenomenologia do ponto de vista metodológico.
Em um contra-ponto com o platonismo metafísico e o racionalismo da modernidade (inaugurado por Descartes), explica o filósofo que o Ser é um ser-ai ("dasein"), um ser-no-mundo; um ser-temporal. O Ser é constituido historicamente. Ele nasce, vive e morre e isso ocorre também embebido por uma época, por um período histórico. Ou seja, segundo Heidegger, o Ser não é uma essência estática, independente do tempo e do espaço. O Ser não se posicionaria fora desse mundo, e por isso não lhe possível colocar em perspectiva (da razão pura) o universo que ele habita. Como geralmente se entendia no campo da ciência e da metafísica desde Platão e sua teoria das ideias/formas/universais. Segundo Platão todas as coisas ou entes no mundo são explicados por suas respectivas essências imutáveis, a-temporais e não-espaciais, porém concretas! mais até do que os particulares, indivíduos, entes. Para Platão o conhecimento não seria possível de outra forma, já que deve ser mais do que a mera percepção pelos sentidos. A noção platônica de conhecimento envolve a nossão de verdade e verdade é o isomorfismo entre o mundo das formas/ideias e o mundo real. 
Contrapondo-se a ninguém menos que Platão, Heidegger desvela uma compreensão possível do ser humano que passa a ser visto como possibilidades de abertura para um fundo sem fim, ou um horizonte universal aberto. O Ser passa a ser entendido então como essa própria possibilidade de abertura. 
Essa nova forma de pensar o Ser tem implicações profundas. Por exemplo, ela implica um novo entendimento da noção de verdade. A verdade passa a ser não a adequação entre o julgamento das ideias e o estado do mundo, como num cenário onde o sujeito observa o objeto que lhe é transcendente ou externo, mas como o desvelamento contínuo e sem fim do mistério do universo pelo sujeito, na presença do próprio Ser do sujeito. 
Mas o Ser não é o sujeito propriamente, tal como normalmente é entendido em geral. O Ser é o universo que engloba também o Ser do sujeito. Para Heidegger, o Ser é essa abertura do sujeito para o Ser do universo, juntamente com o próprio universo, formando um só Ser. Essa abertura que é o Ser, o autor denomina "Dasein"; que, em alemão, significa algo como "ser-aí"; um neologismo criado por Heidegger para expressar essa nova nova conceituação de Ser. 
Conforme sua abertura, o Dasein é mais ou menos permeável ao Ser do mundo, que por sua vez inclui os outros seres e entes humanos e não humanos, todo o universo. Além disso, se o Ser é ser-no-mundo, ele é essencialmente temporal. Ele é a partir da história de sua própria existência, no seu meio ambiente, histórico-cultural e natural. 

Vejamos as implicações desse pensamento para a época de hoje. Que implicações tem essa conceituação do Ser por Heidegger, para o entendimento mais profundo do mundo contemporâneo? Para o entendimento da sociedade da informação, abarcada e "embebida" pelas TICs? 

Ora, quando a parte cultural do mundo que engloba o Ser se virtualiza, é claro que o meio-ambiente cultural do Ser não se reduz mais ao mundo físico. Pode-se esperar que pelo menos uma parte do Ser passe a existir também em uma nova dimensão virtualizada (o mundo virtual da internet/web). 
Ocorre também que a existência nessa nova dimensão predispõe os sentidos do Ser à uma expansão. Por exemplo, muitos consideram seu notebook uma extensão de sua memória, do seu corpo, de sua sensibilidade social etc. é de se esperar que constitua-se assim, com o passar do tempo, um certo sentido expandido ou até, melhor dizendo, um outro sentido adicional, um "sexto sentido" do Ser. 
Pode-se considerar até como uma espécie de "sentido da informação", que o conecta ao mundo virtual e que se naturaliza com o passar do tempo. 
Por outro lado, vão existir também vários efeitos adversos que impactam o sujeito. Há pesquisas mostrando prejuízos do desenvolvimento cognitivo e redução da capacidade crítica, além de vários outros como a alienação, consumismo e dependência. 

Voltando ao início do texto, é aí que se poderia pensar que o fato de estar em um meio-ambiente desconectado, sobretudo para alguém dependente, pode passar a ser análogo à anulação de um dos sentidos do Ser, desse "sentido da informação". 
Extrapolando bastante (talvez nem tanto), pode-se dizer que essa perda seja até mesmo comparável ao que seria a perda de um nos sentidos naturais. Como se, em determinado espaço físico (uma bar, uma praça, uma escola) o Ser ficasse cego, surdo, sem paladar, olfato ou tato.  

Sugere-se que o "bem-estar" subjetivo hoje significa também poder articular-se no ideal de um novo meio-ambiente, em parte virtualizado, que permite e as vezes requer e exige a imersão do Ser na infosfera. 

Portanto, seguindo esse pensamento, acho que será difícil para uma instituição como a escola hoje atrair alunos se esses mesmos alunos têm a sensação de ter o seu sentido da informação bloqueado, logo quando eles mais necessitam dele, no momento do aprendizado, da intelecção. A angústia que gera essa necessidade não satisfeita, seria talvez responsável pela impressão ou sensação de ir para, ou estar no "inferno"... passar algumas horas desconectados tendo aula com professores que, às vezes, dão a impressão de ter parado no tempo, há mais de 20 anos.

Claro que alguns indivíduos irão utilizar a conexão para fugir do mundo físico e se alienar, mesmo que momentaneamente, caso este não o satisfaça por uma razão ou outra (fuja para o facebook por exemplo). Mas, numa concepção mais libertária da educação, essa fuga é prerrogativa de liberdade. Não parece haver muito o que fazer, pois o Ser é livre para escolher sua vida a cada momento da existência. 
Pirâmide informacional
Aqui parece haver matéria para se pensar também várias outras questões fundamentais: como a questão da educação (grau de autoridade e hierarquia x liberdade necessária para originar o novo); a questão ética na sociedade da informação e a ética da informação. 

Na sociedade da informação parece existir, cada vez mais, uma pressão sob a dimensão ou ordem da ética. Dimensão representada esquematicamente pelo 4o. andar da "pirâmide informacional" (dado > informação > conhecimento > sabedoria). 

Quando tudo se transforma em sistema de informação, parece haver uma pressão social que vem de baixo para cima na pirâmide informacional. Como forças que, se por um lado impelem ou obrigam o Ser a uma existência mais moral e ética, por outro aliena e confunde tantos outros. 

Costumo dizer que, na sociedade da informação, quem sobe no palco é a ética. Mas esse fenômeno ainda não está tão claro e articulado em minha mente. Há vários efeitos adversos decorrentes da ubiquidade da informação que precisam ser mais amplamente discutidos.

domingo, 25 de março de 2012

Hedonismo de filho pra pai: despropósito ou propósito de Deus?

Do despropósito da vida [de meu pai],
a minha ganhei;
vida, que a tantos neguei.
Vida sem propósito,
e que, fácil, não deixarei.
Médico, romântico, ele desdenhou o corpo para viver exclusivamente em seu próprio mistério de (universal) mineiridade. Morreu cedo, mas cumpriu seu intento: como toda a grande arte que desvela o espírito da matéria e lança a singularidade do particular no universal, rosa revelou ao mundo global todo o Ser dos entes que compõem a "mireiridade". 
Certamente rosa concordaria com essa fala de Michel Onfray: “O real vive, não se pode tentar circunscrevê-lo com um método fixo, fechado, morto. Para mim, Dioniso prevalece sobre Apolo", mas será que ele concordaria com o final da frase: "..., o que não significa dizer que dispenso os serviços deste último”. Infelizmente não há mais como responder... 

"Um chamado João"
"João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
Vegetal ele era ou passarinho
sob a robusta ossatura com pinta
de boi risonho?


Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
tudo escondido, florindo
como flor é flor, mesmo não semeada?
Mapa com acidentes
deslizando para fora, falando?
Guardava rios no bolso,
cada qual com a cor de suas águas?
sem misturar, sem conflitar?
E de cada gota redigia nome,
curva, fim,
e no destinado geral
seu fado era saber
para contar sem desnudar
o que não deve ser desnudado
e por isso se veste de véus novos?


Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
e precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?


E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?


Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar."
Carlos Drummond de Andrade - 22/11/1967 - Versiprosa

sexta-feira, 16 de março de 2012

A Arte de Viver, segundo o Frei Cláudio


Reproduzo e comento abaixo, texto retirado do blog do Frei Cláudio.


Segundo o Frei Cláudio, há os que reduzem a arte de viver a uma concepção popular do hedonismo que afirma ser o prazer o supremo bem da vida humana – uma espécie de felicidade subjetiva que se realiza, por exemplo, na possibilidade do consumo de bens, sejam básicos ou supérfluos.

"De fato, supõe-se acesso ao alimento, à água, saúde, educação, salário, lazer etc. Mas isso ainda não garante a felicidade. Há tantos que, sendo privados de algo essencial, ainda se julgam felizes." 


Na ética de Aristóteles, continua Frei Cláudio "tudo tende à sua própria perfeição. Alcançar esse objetivo teria a ver com virtude que - êxito nas iniciativas – resulta na felicidade. É o que pode suceder com um casal, um professor, um lavrador, um mecânico, um empresário, um médico, um administrador, um político, um líder, etc."


Conforme Aristóteles felicidade, portanto, não se reduz a um bem-estar subjetivo, mas implica o sucesso em nossos empreendimentos. Por exemplo, "a felicidade de um colecionador implica seu esforço de coletar. Isto é bem mais que o simples receber de algo já feito - pronto, completo - sem que tenha custado algum esforço".


A meditação auto-reflexiva, no sentido de busca pelo auto-conhecimento, surge então como meio para se estabelecer com maior clareza a natureza desses nossos empreendimentos, pois "a arte de viver implica deixar conduzir-se pelo objetivo intrínseco de suas atividades, o que supera algo extrínseco como dinheiro, prestígio e poder (não raro vantagens de carreirista). Pessoas internamente motivadas merecem o respeito de todos. Parecem felizes e irradiam impulsos positivos em seu meio.
Virtude é desenvolver as próprias potencialidades, o que é o primeiro dever para consigo. Aristóteles, em uma perspectiva elitista, julgava que condições indispensáveis - além do esforço pessoal – eram: muito tempo livre e um bom número de escravos. 
À potencialidade existente hão de corresponder condições favoráveis, sobretudo em casos de pessoas excepcionais. Nesse caso, cresce a responsabilidade do poder público quanto ao trabalho, alimentação, saúde, transporte, educação e lazer. A partir disso, as pessoas poderão tomar rumo.


Uma vida com êxito não depende só do esforço das pessoas e de suas escolhas. Entra o fator sorte – eudaimônia = circunstância favorável. Quanto a isso, encontramo-nos em situações bem melhores do que séculos e décadas passados. Hoje – ainda para uma minoria - quase tudo se encontra sob nosso comando, graças à ciência e tecnologia. Entram também em jogo as ‘ocasionalidades” – certos acasos (des-)favoráveis – fora de nosso controle como também vulnerabilidade, envelhecimento, enfermidade e mortalidade. Grave ilusão é querer transformar o mundo em um parque global de diversão como se tivéssemos o dever de ser felizes só no cultivo do prazer.


Ignorar a limitação humana é negar nossa condição de simples mortais. Também a morte (M. Heidegger- sein zum Tode) tem um aspecto positivo. Por mais que doença, velhice e morte sejam uma ruptura, são também o horizonte inevitável que torna a vida significativa. 
Luis Borges o ilustrou pelo conto “O Imortal”, mostrando que a morte enriquece o viver com desafios, fazendo superar indiferença, letargia, imobilidade."


Embora a vida se nos apresente como sem sentido intrínseco (todo sentido só pode ser encontrado fora daquilo a que se deseja dar sentido), vivemos buscamos sentidos para a nossa vida. Como diz o autor, "Vida é mais que sobre-vida, pois o que dá sentido ao viver é seu objetivo. Vida de qualidade vale mais que vida longa esvaziada. Carecemos de projetar nossa vida para além do horizonte atual. Não nos contentamos com nosso limitado existir; buscamos algo que nos transcenda. O direcionamento para algo diferente – um fim superior a nós - dá sentido ao viver. Todos vivemos em vista de algo fora e além de nós – ideal - como a pessoa amada, filhos, trabalho, empresa, sociedade, ciência, filosofia, espiritualidade."


Claro que nessa busca de sentido o risco que nos acompanha é o fracasso ou a perda... "Basta lembrar de adeptos de uma ideologia que não se realiza, de um amor que fracassa, de um Deus que não existe, de uma religião que não corresponde." 

Não nos envolver ou nos apegar à pessoas ou as coisas no sentido erótico (eros platônico, sentimento de falta) seria uma saída então para não sofrer perdas ou fracassos?
Continua o Frei Cláudio...  "Certo, quem não se engaja, não corre risco, não se (des-)ilude, porém leva uma vida vazia, sem ideal, desinteressante, enjoada. O estoicismo é uma alternativa, porém, enquanto preserva de perdas, não preenche o vazio. Vida sem risco é vida sem valor. Ninguém imuniza sua felicidade contra azar ou destino. Basta viver bem e, mesmo em adversidades, ter um pouco de sorte, a fim de que vida não pese demais e até adquira um sentido, embora exija um preço. Aqui, a alegria é uma oferta gratuita; ela nos pode surpreender, mesmo que não a tivéssemos em vista. Viver vale a pena. Quase sempre."

terça-feira, 13 de março de 2012

Os Estatutos do Homem (Thiago de Mello)

Thiago de Mello

 "Não, não tenho caminho novo, o que tenho de novo é o jeito de caminhar."

 Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony


Artigo I 
Fica decretado que agora vale a verdade. 
agora vale a vida, 
e de mãos dadas, 
marcharemos todos pela vida verdadeira. 

Artigo II 
Fica decretado que todos os dias da semana, 
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Artigo III 
Fica decretado que, a partir deste instante, 
haverá girassóis em todas as janelas, 
que os girassóis terão direito 
a abrir-se dentro da sombra; 
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
abertas para o verde onde cresce a esperança. 

Artigo IV 
Fica decretado que o homem 
não precisará nunca mais 
duvidar do homem. 
Que o homem confiará no homem 
como a palmeira confia no vento, 
como o vento confia no ar, 
como o ar confia no campo azul do céu. 

Parágrafo único: 
O homem, confiará no homem 
como um menino confia em outro menino. 

Artigo V 
Fica decretado que os homens 
estão livres do jugo da mentira. 
Nunca mais será preciso usar 
a couraça do silêncio 
nem a armadura de palavras. 
O homem se sentará à mesa 
com seu olhar limpo 
porque a verdade passará a ser servida 
antes da sobremesa. 

Artigo VI 
Fica estabelecida, durante dez séculos, 
a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 

Artigo VII 
Por decreto irrevogável fica estabelecido 
o reinado permanente da justiça e da claridade, 
e a alegria será uma bandeira generosa 
para sempre desfraldada na alma do povo. 

Artigo VIII 
Fica decretado que a maior dor 
sempre foi e será sempre 
não poder dar-se amor a quem se ama 
e saber que é a água 
que dá à planta o milagre da flor. 

Artigo IX 
Fica permitido que o pão de cada dia 
tenha no homem o sinal de seu suor. 
Mas que sobretudo tenha 
sempre o quente sabor da ternura. 

Artigo X 
Fica permitido a qualquer pessoa, 
qualquer hora da vida, 
uso do traje branco. 

Artigo XI 
Fica decretado, por definição, 
que o homem é um animal que ama 
e que por isso é belo, 
muito mais belo que a estrela da manhã. 

Artigo XII 
Decreta-se que nada será obrigado 
nem proibido, 
tudo será permitido, 
inclusive brincar com os rinocerontes 
e caminhar pelas tardes 
com uma imensa begônia na lapela. 

Parágrafo único: 
Só uma coisa fica proibida: 
amar sem amor. 

Artigo XIII 
Fica decretado que o dinheiro 
não poderá nunca mais comprar 
o sol das manhãs vindouras. 
Expulso do grande baú do medo, 
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal 
para defender o direito de cantar 
e a festa do dia que chegou. 

Artigo Final. 
Fica proibido o uso da palavra liberdade, 
a qual será suprimida dos dicionários 
e do pântano enganoso das bocas. 
A partir deste instante 
a liberdade será algo vivo e transparente 
como um fogo ou um rio, 
e a sua morada será sempre 
o coração do homem. 


Santiago do Chile, abril de 1964

terça-feira, 6 de março de 2012

Implicações contemporâneas do "Mundo da técnica" de Heidegger

O entendimento de Heidegger sobre o "Mundo da técnica" me parece interessante para refletir sobre o perigo da alienação a que a tecnologia nos sujeita, a todos sem exceção. 
Segundo o autor, depois que a ciência foi tomada pelo capitalismo, não sabemos mais para onde vamos com ela; o ideal original da modernidade (renascimento e iluminismo) de que a ciência nos traria uma vida melhor pelo domínio da natureza se perdeu. 
A simples competição pelo poder de consumir teria tomado o lugar desse ideal e pode estar nos transformando em zumbis, que só fazem competir para sobreviver... conclusão: hoje somos alienados antes mesmo de sermos ateus.  


Pessoalmente, vivendo no mundo, sinto que existe essa perspectiva, que eu mesmo não entendo tão claramente. Ao ler o filósofo Luc Ferry (em seu livro "Aprender a Viver"), numa exposição sobre o que Heidegger chamava de "O Mundo da Técnica", as ideias ficaram mais claras. 
Heidegger entendia que o mundo da técnica é a realização radical do pensamento de Nietzsche: não há mais ídolos (espirituais ou materiais) e esse vazio o capital ocupou. 



quinta-feira, 1 de março de 2012


Entrevista com Luc Ferry

Para o filósofo Luc Ferry, se ficamos tão chocados com casos como o da menina Isabella, é porque amar a família é uma novidade radical na nossa história

por Rita Loiola (Revista Super-Interessante)
julho 2008

filósofo Luc Ferry é o oposto do que geralmente se associa a um intelectual francês. Seus livros são fáceis de ler – estão sempre na lista dos 10 mais vendidos na França. Os títulos lembram a auto-ajuda (Aprender a Viver, O Que É uma Vida Bem-Sucedida ou FamíliasAmo Vocês), mas tratam apenas de questões-chave da história da filosofia. “Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder”, diz. Além de escrever best sellers, Luc Ferry milita na direita francesa, ao contrário de muitos dos seus colegas intelectuais. Membro do atual governo do presidente Nicolas Sarkozy, ele era ministro da Educação em 2004, quando a França criou polêmica ao proibir que as crianças usassem símbolos religiosos na escola – lei que afetou sobretudo jovens muçulmanas que usavam véu. Ele também não é um intelectual pessimista, mas um entusiasta da maneira de viver e pensar do Ocidente. Se o Brasil e o mundo ficam escandalizados com a morte da menina Isabella ou o caso do austríaco que praticou incesto com a filha durante 28 anos, Ferry diz que nunca amamos tanto nossa família. Numa tarde quente de primavera em Paris, o filósofo explicou por que o amor à família é a novidade na história que define o mundo de hoje.
No livro FamíliasAmo Vocês, lançado este mês no Brasil, você diz que os pais nunca amaram tanto os filhos. No entanto, estamos todos chocados com o caso de uma menina que foi jogada pela janela do 6º andar. E, na Áustria, veio à tona um caso de incesto que durou 28 anos. Esses episódios não o contradizem?
Não. Já ouvi falar dezenas de vezes desse caso da garota Isabella, e estamos todos chocados, tanto quanto com o caso de incesto da Áustria. O importante é que, hoje, esses episódios deixam a maior parte da população escandalizada. Analisando historicamente, percebemos que nem sempre as pessoas ficaram chocadas com histórias como essas. Até o século 18, antes do nascimento da família moderna, cerca de 30% das crianças eram abandonadas. No norte da França, as mortes chegavam a 90% no primeiro ano de vida. Na Idade Média, a morte de uma criança era menos importante que a perda de um cavalo. Existiam diferenças em relação ao primogênito, mas, em geral, as crianças simplesmente eram abandonadas para morrer. A situação mudou completamente. E, no futuro, a família deve se tornar ainda mais importante.
Por quê?
Porque o ser humano é uma das últimas coisas sagradas hoje em dia. Na história, o sagrado (aquilo pelo qual somos capazes de arriscar nossa vida) mudou muito. Os europeus já morreram por 3 grandes motivos: Deus, a pátria e a revolução. Nos últimos séculos, houve mortes maciças em guerras de religião, nacionalistas e guerras revolucionárias. Esses motivos desapareceram. Os jovens ocidentais de hoje não são capazes de morrer nem pela pátria, nem por Deus, nem pela revolução. Acabou.
Mas ainda existe quem morreria por um ideal, como os homens-bomba ou os terroristas bascos. Não?
Existem os extremismos políticos, mas acredito que, entre os ocidentais, nem mesmo os 5% de extrema direita ou esquerda morreriam por um ideal. No entanto, os únicos seres pelos quais seríamos capazes de arriscar nossa vida são os outros seres humanos – nossos filhos, nossos amigos ou mesmo pessoas que passam por situações graves de miséria, como os famintos da África e os movimentos humanitários que tentam salvá-los. O sagrado não desapareceu, ele só mudou de lugar e se encarnou na humanidade. Passamos da transcendência vertical – Deus, pátria, as grandes utopias – para a transcendência horizontal – os homens. Na minha opinião, trata-se de uma grande mudança. É uma maravilha não morrer por motivos estúpidos, e sim para salvar outros seres humanos. Muita gente acha que o fim das utopias é uma tragédia. Para mim, é uma coisa formidável.
Como o fim dos ideais influencia a política hoje?
No Ocidente, faz com que a política, em vez de ser um fim em si mesma, seja um auxílio para a vida privada. Hoje em dia, as pessoas pedem que nós, políticos, sejamos um instrumento do desenvolvimento da família. Não trabalhamos a serviço da glória do país ou da revolução, mas a serviço dos cidadãos. É uma mudança de foco imensa. Com ela, surgem problemas novos, como a preocupação com as gerações futuras. Vem daí o interesse pela ecologia e também pela dívida pública – questões para resolvermos a longo prazo. Temos que dar conta desses problemas não para contribuir para a grandeza do país, mas porque não queremos deixar um mundo pior para nossos filhos.
Essa preocupação com a família é um dos aspectos do que você chama de “novo humanismo” do mundo moderno ou “sabedoria do amor”?
Exatamente. O mundo de hoje é marcado por relações amorosas que têm uma origem muito recente. Antes do capitalismo, as pessoas se casavam à força e nunca por amor. O casamento tinha duas funções: manter a linhagem familiar e tocar a vida rural – fazer a roça, construir cercas para os animais, preparar a comida e até fazer as próprias roupas. Com o capitalismo, surge o povo assalariado e o mercado de trabalho. As mulheres saem da roça para trabalhar nas cidades, vão ser operárias, domésticas em casas burguesas e se descobrem como indivíduos. Largam a bolha em que viviam e descobrem duas liberdades: o anonimato – ninguém mais as vigia – e o salário, um pouco de dinheiro que significa a autonomia material. Coloque-se no lugar dessa moça que escapa do olhar da família e do padre da vila: é uma liberdade formidável! Essa mulher passa a se recusar a ser casada à força. Ela vai querer “se” casar – e com alguém de quem ela goste. Surge assim o casamento por amor, e desse casamento vem o amor pelos filhos e depois a sacralização das pessoas. Foi assim que o amor familiar virou um grande traço que nos define hoje em dia.
Então é o amor que dá sentido à vida hoje?
Sim. O amor é uma das poucas coisas absolutas, indiscutíveis hoje em dia. E a única coisa capaz de dar sentido à vida é o absoluto. Antigamente, o valor absoluto era uma coisa transcendente, ou seja, superior a nós, como Deus e a eternidade. O valor absoluto caía do céu. Mas agora ele está em nós, o que eu chamo de uma “transcendência na imanência”. É mais ou menos como quando alguém se apaixona: ele descobre a transcendência do outro, mas consciente de que o sentimento foi criado dentro de si. A verdade não é mais descoberta hoje sob argumentos autoritários, superiores, mas na sua parte mais íntima – o coração.
Alguns psicólogos dizem que estamos obcecados pela felicidade e pela realização pessoal. Essa busca por felicidade do mundo moderno pode nos levar a mais decontentamento?
Bem, você gostaria de voltar aos séculos passados onde essa felicidade não existia? Se não gostaria, é preciso aceitar que a vida moderna, democrática e livre tem um custo, que é fazer e até mesmo inventar a vida sozinho, arranjar um sentido para a própria vida. Certamente não devemos pensar que a vida deve ser sempre feliz e despreocupada. Pessoas que tentam viver como se a vida pudesse ter nenhum sofrimento lembram um animal – digamos, um coelho – que vive sem imaginar que há um caçador por perto para estragar a festa. Kant, o filósofo alemão, diz que se a Providência quisesse que fôssemos felizes não teria nos dado a inteligência. Nunca conseguiremos ter uma vida totalmente despreocupada. O ser humano tem problemas, tem medos que o fazem diferente de um coelho que brinca inocentemente.
Os títulos de seus últimos livros parecem tirados de manuais de auto-ajuda, mas falam somente sobre questões filosóficas cruciais. A filosofia pode nos ajudar a viver melhor?
Sim. Quando a filosofia surgiu, na Grécia, era uma “aprendizagem sobre a vida”, e não um discurso chato, como hoje. Naquela época, as escolas de filosofia passavam como lição de casa exercícios para os alunos viverem melhor e mais livres. Por isso, um dos meus livros têm o título Aprender a Viver, que é uma frase de Sêneca, o filósofo estóico grego. Só depois da vitória do cristianismo sobre a cultura grega que a filosofia vira questão religiosa e acadêmica. Quando a religião cristã se sobrepõe àfilosofia, principalmente a partir da Idade Média, e toma para si a questão da “aprendizagem da vida” ou do “saber viver”, a filosofia fica esvaziada de seu objetivo principal e se transforma em um estudo abstrato e puramente teórico. Apesar de a vida na Grécia e no século 21 serem bem diferentes, os problemas do ser humano são parecidos. Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior.
Mas atualmente ajudar a viver melhor não é papel da psicologia?
O projeto da filosofia e da psicologia é igual – salvar o ser humano dos seus medos. Mas os caminhos são bem diferentes. Acho que a psicologia nos diz “como” e a filosofia responde “por que”. A psicologia acalma e a filosofia mostra o sentido.