Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
"
Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

As quatro ordens

Tentei reproduzir abaixo, o mais fielmente possível, as ideias propostas pelo filósofo André Comte-Sponville sobre as 4 ordens.

"Se colocar o problema do limite é perguntar o que não é permitido.

1. A ordem econômica, técnica e científica 
Podemos começar por exemplo, nos perguntando sobre os limites que devem ser definidos para as ciências da vida. A biologia pode dizer quais são os fatores genéticos tecnicamente possíveis, mas não é o seu campo dizer que esses são ou não permitidos. Assim é para a economia de mercado.
Tem-se aqui um primeiro domínio, o domínio econômico-técnico-científico, estruturado internamente pela oposição entre o possível e o impossível. Deixado à sua
única e exclusiva espontaneidade, ele realizaria o que o biólogo Jacques Testart chamou de "uniquematie do universo técnico", cujo princípio é que tudo será feito, desde que a anarquia tome conta. No entanto, o possível torna-se particularmente assustador hoje. Por conseguinte, é necessário limitar esta tecno-ciência, e limitá-la do exterior, já que ela é incapaz de limitar-se.

2. A ordem política e jurídica
Então eu apresento uma segunda ordem, a ordem da lei e da justiça, estruturada internamente pela oposição de legal e ilegal. Ela também é incapaz de se limitar, e isso é necessário por duas razões:
- Uma razão individual: uma pessoa que respeitasse escrupulosamente a lei país onde vive, mas que se contentasse com apenas isso, poderia muito bem mentir, ser egoísta e má. A lei não a impediria tal comportamento, obviamente. Não se tem nada nessa ordem, nem na primeira, para escapar ao fantasma do "bastardo legalista" e, talvez, também cientificamente competente.
- Uma razão coletiva: alguns anos atrás, na Sorbonne, propus como tema de dissertação em filosofia política: "O povo teria todos os direitos?" Quase todos os alunos responderam que em uma democracia, o povo é soberano e ele tem todos os direitos, já que é ele que faz o direito. A conclusão lógica desta posição é que pessoas têm direito a medidas antidemocráticas.


3. A ordem da moral
O campo que limita a política e a justiça é aquele da moral, estruturada internamente pela oposição entre o bem e o mal, do dever e do proibido. Parece que a moral não precisa ser limitada: como é que seria algo "ético demais"? Mas essa ordem pode e deve ser completada, porque ela é insuficiente. Um indivíduo que fizesse sempre o seu dever, e apenas o seu dever, seria um fariseu, careceria de uma dimensão talvez essencial: o amor.

4. A ordem do amor
Daí uma quarta ordem: ordem da ética, a ordem do amor, que não se limita à ordem da moral, mas a completa, a abre pelo alto. Eu chamo o que fazemos por dever, de moral. A ética é o que fazemos por amor.

Eu não vejo bem o que poderia ser colocado acima do amor. Um crente pode considerar uma quinta ordem, a ordem do divino, o que garantiria a coesão do todo. Mas a fé é uma possibilidade que eu não posso fazer minha, e que eu não sinto falta, porque o amor infinito não é a temer, por duas razões: nós não desejaríamos nada melhor, e ele não é a nossa maior ameaça.

Pretender que o capitalismo seja moral, portanto, seria afirmar que a primeira ordem seria submetida à terceira, que eu acho que é excluída pela estrutura interna de cada uma dessas ordens: o possível e o impossível não tem nada a ver com o bem nem com o mal. 
Imagine a reação de um físico, que ao explicar-lhe a equação de Einstein: "E = mc2", e que você argumentasse que isso não é muito moral, porque detonou bombas atômicas. Ele responderia que vocês não falam da mesma coisa.

Na ordem econômico-técnico-científica, nada nunca é moral. Nada é imoral, porque, para ser moral, deve ser imoral. Tudo é amoral, o que significa que a moralidade privada é irrelevante explicar um processo que se desenrola nesta primeira ordem.
 

Para a pergunta: é o capitalismo Moral? Eu respondo isso: obviamente que não. Porque ele é radicalmente e permanentemente amoral. Se quisermos ter uma moral numa sociedade capitalista, essa moralidade deve vir de outro lugar que o mercado."

domingo, 12 de junho de 2011

A presidente ou a presidenta?

A presidenta foi estudanta? Existe a palavra: presidentA? Que tal colocarmos um "BASTA" no assunto, Presidenta? Mas, afinal, que palavra é essa totalmente inexistente em nossa língua?

Bem, vejamos: no português existem os particípios ativos como derivativos verbais. Por exemplo: o particípio ativo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante...
Qual é o particípio ativo do verbo ser?
O particípio ativo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade. Assim, quando queremos designar alguém com capacidade para exercer a ação que expressa um verbo, há que se adicionar à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte.

Portanto, à pessoa que preside é presidentE, e não "presidentA", independentemente do sexo que tenha. Se diz capela ardente, e não capela "ardenta"; se diz estudante, e não "estudanta"; se diz adolescente, e não "adolescenta"; se diz paciente, e não "pacienta".

Texto de Miriam Rita Moro Mine
Universidade Federal do Paraná

sábado, 11 de junho de 2011

Até que ponto a informação nos revela a verdade?

Resenha do Capítulo "A verdade e nós" do livro “Valor e verdade: estudos cínicos”, de André Comte-Sponville.
O livro reúne “doze estudos que têm em comum versar sobre um mesmo objeto, que é a relação entre valor e verdade”.

O autor estrutura seu texto em torno das três perguntas fundamentais com as quais I. Kant define a filosofia:
  1. "O que podemos conhecer?" questionamento respondido pelas disciplinas: epistemologia e ontologia. Esta última pergunta: "o que há? para podermos conhecer"; 
  2. "O que devemos fazer?" objeto de estudo da filosofia moral (ética); e 
  3. "O que podemos esperar?" problema refletido pela metafísica e pela espiritualidade. A metafísica o aborda por meio de termos, conceitos e raciocínios. A espiritualidade por meio de experiências e vivências às vezes compartilhadas. 
À luz desse esquema teórico, Comte-Sponvile analisa a nossa modernidade.

O que é a verdade para o cientista? se para o filósofo a resposta pode variar, para o cientista a verdade é, no mínimo, tudo aquilo que se sabe cientificamente hoje; mesmo que o futuro a revele sempre incompleta e as vezes equivocada.

Nossa modernidade teórica (o que podemos conhecer?)
Aprendemos a distinguir nossos conhecimentos (relativos, parciais, provisórios) da verdade (eterna e absoluta). O próprio progresso do conhecimento e da lucidez epistemológica nos desiludiu desse ideal. A identidade entre o ser o e conhecimento nos é vedada - não apenas de fato, como de direito e definitivamente - pelas próprias condições que tornam esse conhecimento possível. O pensamento só pode se identificar com seu objeto na medida em que primeiro o constitui como objeto (de conhecimento), o qual não é o ser. O real é velado ou distante, embora estejamos dentro dele. Lição da física quântica (Bohr, Heisenberg), bem como da epistemologia contemporânea (Popper). Mesmo antes, Montaigne e Pascal já diziam: "Não temos nenhuma comunicação com o ser". Nunca conheceremos o verdadeiro a não ser indiretamente, pela mediação do falso, que às vezes sabemos detectar. Nenhum contato absoluto com o absoluto: o ser nos contém, mas nem por isso saberíamos contê-lo adequadamente.
Quer isso dizer que não há verdade, como às vezes ouve-se falar? Claro que não: se nada fosse verdade, não seria verdade que não há verdade, e é por isso que a proposição "não há verdade" se auto-destroi. A verdade é o que diferencia nossos conhecimentos de nossas convicções ou opiniões. Kant separava três ordens de pensamento. O "saber":  como um pensamento subjetiva e objetivamente suficientes; de uma "convicção": um pensamento subjetivamente suficiente mas objetivamente insuficiente; de uma "opinião": um pensamento tanto subjetiva quanto objetivamente insuficientes.
Postulado da razão teórica, que garante algum racionalismo: há verdade já que há conhecimento. Só há conhecimento na norma da verdade dada ou possível.
Com isso não se altera a concepção semântica da verdade. Como diria Tarski, a verdade de uma proposição consiste sempre em sua correspondência com a realidade. "A proposição 'a neve é branca' só é verdadeira se a neve é branca"; mas isso não altera o estatuto ou o alcance ontológico do conhecimento (o ser, para ele, está fora de alcance, ou só poderia ser atingido indireta e aproximadamente). Pode haver verdade em nossos conhecimentos, mas nossos conhecimentos não são a verdade, nem poderiam identificar-se com ela. Este é o abismo que funda nossa modernidade teórica.

Nossa modernidade prática (o que devemos fazer?)
Separação entre valor e verdade. Classicamente os filósofos consideravam que o verdadeiro e o bem andavam juntos: que o verdadeiro era o bom e o bom era o verdadeiro.
Aristóteles (em Metafísica): "É porque algo é bom que este algo nos parece desejável, em vez de este algo nos parecer bom porque o desejamos: o princípio é o pensamento; ora, o intelecto é movido pelo inteligível..." Como desejaríamos o que não conhecemos? E por que desejaríamos conhecer se a verdade não fosse boa?
"Tudo o que é, é bom", dirá Santo Agostinho; "o bem e o ser são uma única e mesma coisa", dirá são Tomás; e o mal nada mais é que uma privação ou que um ser menor. Deus é a verdade que faz norma: graças ao que nossos valores são verdadeiros, graças ao que nossas verdades valem. Isso durou uns dois mil anos, e fez uma civilização - a nossa civilização judeo-cristã.
Descristianizando-se o Ocidente, foi necessário porém procurar outra coisa. O que primeiro se encontrou foram deuses substitutos: a ciência depois a história, ou antes, os que diziam seguí-la pretenderam assim conjungir por sua vez o verdadeiro e o bem, o ser e o dever-ser, a verdade e o valor. Daí essa religião da Ciência, que foi o cientificismo, ou essa religião da História, que foi o marxismo.
Dizia Hegel: "O mundo real é tal como deve ser", "o verdadeiro bem, a razão divina universal é também a potência apta a se realizar. Esse bem, essa razão, sob a sua representação mais concreta, é Deus".
Esses ídolos não existem mais. Quanto mais as ciências progridem, mais parece que eles são incapazes de resolver qualquer problema normativo. As ciências não comandam; as ciências não julgam. As ciências não poderiam portanto substituir nem a religião, nem a moral, nem a filosofia. Incapazes que são de nos prescrever o que fazer. Assim as ciências ou a história não nos dizem mais sobre o bem. Conhecer não é mais julgar; julgar não é mais conhecer. Os conhecimentos cessaram de erigir-se em norma; os valores cessaram de ser verdadeiros. Nossos valores não se fundam mais em nossos saberes. Em que fundá-los então? No desejo. É preciso inverter a proposição de Aristóteles: "uma coisa nos parece boa porque nós a desejamos, e não o contrário: só desejamos porque ela nos parece boa" (Espinosa). O Verdadeiro não é o bem: nenhum bem é verdadeiro. É mais um abismo que funda nossa modernidade prática. O que vale não é o que conhecemos, mas o que desejamos, queremos e amamos. "A justiça não existe, é por isso que é preciso fazê-la" (Alan).

Nossa modernidade espiritual (o que podemos esperar?)
Amar a Deus, se nele cremos, era amar a Verdade que nos amava - e a verdade era, assim, tanto mais amável quanto a sabíamos infinitamente amante! Mas eis que a verdade, sem se abolir, cessa de se fazer passar por amante, em outra palavras, Deus morre. Eis que nos anunciam, não que não há mais verdade, mas que ela não nos ama, que é indiferente a tudo, isto é, a ela própria! Divórcio entre amor e verdade. Conhecer não é amar; amar não é conhecer. Quantas verdades odiosas! Quantos erros amáveis! modernidade espiritual: nem mesmo a verdade é Deus!
Devemos por isso nos afogar no niilismo e na sofística? Somos capazes de amar a verdade apesar de tudo, ainda que ela não corresponda às nossas esperanças. É possível que a verdade seja triste?
Ainda que ela não nos corresponda, saberemos aprender a amá-la sem retorno, de um amor desinteressado, amar em pura perda, a amar solitariamente, desesperadamente (sem esperar)?
Não que seja preferível. Quem não prefere ser amado? Quem não gostaria que esse amor fosse a própria verdade? Desde quando é preciso ser amado para aceitar amar? O amor é uma alegria que acompanha a ideia de uma causa externa (Espinosa), e a única: a verdade só é alegre para quem ama conhecer, só é triste para quem fracassa em amar.
Não há portanto que escolher entre o conhecimento e o amor. Amar e conhecer são duas coisas diferentes, mas não incompatíveis nem separadas: o desejo de verdade pode encontrar a verdade do desejo. O conhecimento do amor pode confortar o amor ao conhecimento. Seria preferível que nos bastasse amar para conhecer ou conhecer para amar. É por isso que os dois são necessários, um não podendo substituir o outro e não podendo se unirem de outro modo que em nós, contanto que amemos o verdadeiro, contanto que conheçamos o amor. Que isso seja pouco, que esperávamos outra coisa (a conjunção do verdadeiro e do bem, da verdade e do amor)... mas não se trata de esperar, mas de viver, e azar o nosso se é difícil. Precisamos de coragem.

Por uma política do pior. Brasil sem miséria! A social democracia entre o conservadorismo e a utopia.

"La politique n’est pas là pour faire le bonheur des hommes.
Elle est là pour combattre le malheur"

Comte-Sponville
A sugestão não é que se "busque o pior", como diz o dicionário, "para dele tirar partido!". Essa seria a pior das políticas. Esperar o melhor do pior é ainda esperar o melhor, e é por isso que a política do pior, nesse sentido tradicional, não passa de mero otimismo. Afinal por que o pior não perduraria? Seria a política mais ineficaz para um povo (Tiririca: pior não fica?). A história revela que não são os mortos de fome que fazem as revoluções, nem os mais miseráveis que triunfam da miséria.

No sentido tomado aqui, trata-se de uma política que em vez de querer realizar o melhor, se atribui a tarefa de enfrentar o pior. Ou seja, uma política, não do melhor regime possível, como ideal ou utopia, mas do maior mal real, como obstáculo a vencer; problema a superar.

Quando se renuncia à utopia, pode-se acreditar que não há mais nada a fazer senão conservar o que existe, isto é, gerir a sociedade existente. Essa tentação tão fortemente percebida na política do PSDB é uma posição tão mortal quanto a posição utópica. É necessário conservar e transformar, toda política atua entre esses dois polos; é o que dá sentido à oposição entre os conservadores e os progressistas. Compreende-se que os que mais sofrem com a sociedade atual tenderão a ser progressistas, assim como os que mais benefícios nela encontram tenderão a ser conservadores.

Saber o que queremos é menos saber qual seria a melhor sociedade possível (utopia) do que saber o que há de pior na sociedade real que queremos mudar. Trata-se portanto de opor o conhecimento do real à imaginação do ideal e a urgência do pior à espera do melhor. A política do pior, nesse sentido, não busca o pior, claro, mas pára de negá-lo ou de imaginá-lo anteriormente derrotado: ela o vê, ela o pensa, ela o enfrenta. É o contrário da utopia e o antídoto do idealismo. Na medida em que prentende conjugar o verdadeiro e o bem (o que só ocorre em Deus), o idealismo abre caminho para a religião na política, e toda religião, dizia Lucrécio, é portadora de crimes.

A política do pior não se contenta portanto apenas em conservar ou administrar mas também transformar: não se trata de realizar (utopia) ou de manter (conservadorismo) a melhor sociedade possível, mas de transformar a sociedade real mediante a supressão ou a redução do pior. 

A gestão é uma grande necessidade. As grandes necessidades, no mais das vezes, são pequenas coisas, mas que nem por isso são menos necessárias... A questão que se coloca a nossos dirigentes é a seguinte: a gestão, muito bem; mas é o que você faz com o pior? Ao enfatizar a importância da gestão e contentar-se em ser bom gestor (programa "Choque de Gestão" em Minas), faz-se a política do "menos mal". Enquanto isso, o governo petista faz a política do "pior" (bolsa família, brasil sem fome etc.) e, aos poucos, vai tranformando a sociedade brasileira.

Política do pior: política do saber, da vontade e da ação! É o contrário da utopia, que é a política da imaginação, do desejo e da esperança. Pelo menos no seu início. Depois, ao fracassar ou querendo se realizar, se submete por sua vez às exigências da política. E o sonho torna-se então pesadelo. É preciso sonhar, tudo bem; mas não tomar o sonho por um conhecimento nem, principalmente, por um programa. A política do pior supõe que não confundamos nossos sonhos com a realidade.

Mas e concretamente? Como é essa política do pior? Ela já era uma política do real na França de Simone Veil, em 1975. A lei Veil é um forte exemplo da política do pior. Não importa o que se pense do aborto, do ponto de vista moral, essa lei é hoje um quase consenso naquele país (à parte a extrema direita).
Com efeito, ninguém pode decidir no lugar das mulheres ou dos casais envolvidos, sobre esse tema.
Uma lei como essa é o contrário de uma utopia: todo aborto é um fracasso; todo aborto é uma desgraça. Na melhor das sociedades possíveis, o aborto não existiria: o amor e a contracepção bastariam. Muito bem, mas deveríamos então esperar? A questão é menos saber como uma sociedade ideal lidaria com o aborto (já que numa sociedade ideal a questão nem se colocaria), mas o que se considera pior: abortos clandestinos, com o risco que se sabe, ou abortos descriminalizados praticados no ambiente hospitalar? em vez de esperar ou prometer o melhor possível (o desaparecimento do aborto!), suprimiu-se a pior realidade (o aborto clandestino!). Isso é o que se chama mudar, e é para isso que serve a política.

Outro exemplo, a Renda Mínima de Inclusão (implantada na Dinamarca em 1933 e França em 1988). De novo, é o contrário de uma utopia: numa sociedade ideal, haveria nem miseráveis nem excluídos, logo ninguém a incluir. Seja. Mas vamos esperar? Podemos? Devemos? Em vez de sonhar ou anunciar uma sociedade em que a miséria teria desaparecido (o futuro radioso, a justiça, a prosperidade...), os deputados desses países preferiram enfrentá-la como tal e considerar que ela fazia parte, na sociedade, do que havia de pior. Política não do melhor possível, mas do pior real.
Não que isso resolva tudo, nem que não se podia fazer melhor. Constato que essas leis mudaram efetivamente alguma coisa, no sentido correto, e que elas são nisso, um exemplo da utilidade da política. A política não serve para administrar (muito embora não haja política sem gestão), mas para mudar (ou, conforme o caso, para combater a mudança), e isso é uma coisa que um administrador faz dificilmente.

A "política do pior" não deve ser confundida portanto, com uma "política do mal menor", se se entender por isso uma política que se contentaria com não agravar a situação (quando se trata evidentemente de melhorá-la) ou com não fazer o pior (quando se trata não apenas de não fazê-lo mas de enfrentá-lo). Uma política do mal menor seria o menos possível de política (uma política da menor política!) e o triunfo, novamente, da pura gestão. Uma política do pior, ao contrário, é necessariamente uma política da transformação (trata-se de não mais suportar o pior), o que supõe um "plus" de política: é sempre necessário mais vontade e combates para transformar do que para administrar. Mas esse "plus" é a própria política, ou pelo menos o que lhe dá sua urgência e sua dignidade.

Texto inspirado a partir de "Uma política do pior? (O socialismo entre conservadorismo e utopia) de Comte-Sponville"

terça-feira, 7 de junho de 2011

Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão 

tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes 

Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse
um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros

sábado, 4 de junho de 2011

Imposturas intelectuais ou cientificismo exacerbado. É possível um meio termo?

À luz das palavras de Gizêlda M. Nascimento abaixo, relato nesse post por que não terminei a leitura do livro "Imposturas Intelectuais" de Alan Sokal e Jean Bricmont.
"Uma reflexão sobre o Século das Luzes, leva-nos a julgar, grosso modo, tratar-se de uma tentativa para, à luz da razão, libertar o homem livrando-o das amarras do discurso religioso e sua posição centralizadora. Libertar a humanidade de todo um corolário de valores tais como: pecado, punição e sacrifício. Retirá-lo do centro para, enfim, poder acreditar nas convicções de Leibinz de que “este é o melhor dos mundos possíveis”. O sorridente século XVIII trazia a promessa de experimentarmos a felicidade aqui, neste mundo. E o aqui não representaria mais um estágio, um espaço de provações para se alcançar a felicidade no reino de Deus. A felicidade é aqui: começa e termina no mundo dos homens iluminados pela razão. 
Ora, ao trazer a razão e, conseqüentemente, a ciência a reboque (ciência como deveria ser interpretada: isenta de ideologias) para o centro das expectativas, como proposta para uma sociedade feliz, é possível afirmar que o século das Luzes – não em sua intenção originária, mas em seus desdobramentos – foi de pouco fôlego. Neste sentido e mesmo correndo o risco de sermos julgados essencialistas e deterministas perguntamos: não estaria a sociedade humana fadada, pelas perseguições obsessivas às suas idéias, à infelicidade? Senão vejamos: a proposta iluminista ao abrir flanco para o desenvolvimento da ciência, dá, por sua vez, passagem para a organização do discurso científico. E o que vamos assistir no decorrer do século XIX (logo após ou ao lado do projeto romântico) é à procura da explicação do homem, não mais como criação divina à semelhança de Deus, mas como espécie. Eis o grande salto em termos de concepção e visão de mundo. Libertos das noções de salvação ou perdição, livramo-nos do assombroso julgamento posterior a nossa existência; estaríamos livres, então, para vivermos o ‘paraíso’ (ou o inferno) na terra." (Gizêlda M. Nascimento).
Os autores do livro "Imposturas Intelectuais" criticam de forma virulenta e, na minha opinião, até irresponsável um certo relativismo característico, segundo eles,  da ciência pós-moderna. 
O problema é que o fazem sem antes oferecer ao leitor nenhum detalhamento daquilo que eles próprios entendem por "relativismo". Sem uma definição clara e precisa do fenômeno que estão criticando, toda a crítica cai no vazio.
Interessante notar que os autores partem de uma definição, em seus próprios dizeres: grosso modo, do termo "relativismo".

Designam relativismo "qualquer filosofia que afirme que a veracidade ou falsidade de uma asserção é relativa a um indivíduo ou a um grupo social.
Penso que trata-se de uma definição senão ingênua, ideológica do termo. Uma definição mais amplamente aceita seria: "o relativismo é um movimento de pensamento que atravessa os séculos desde a antiguidade greco-romana, que indica um conjunto de doutrinas que defendem a tese de que o sentido e o valor das crenças e comportamentos dos seres humanos não têm referência absoluta transcendente." (wikipédia). Ainda segundo a wikipédia: O sucesso do relativismo cultural a partir da segunda metade do século XX, no Ocidente garantiu a primazia e a exclusividade a este sentido da palavra. Os ideólogos anti-relativismo, também usam frequentemente o termo "relativismo", mas de forma frouxa, para se referir ao historicismo, uma das características mais acusadas do nosso tempo.

Existem variantes do relativismo, notadamente um relativismo cognitivo, que afirma um ponto de vista segundo o qual "o conhecimento é o produto de uma construção e por isso mesmo não pode ser considerado como objetivo", e um relativismo cultural que afirma que essas normas e valores são únicos para cada "cultura" ou "subcultura" e que por isso não pode ser fundamentado em base objetiva.
Tomando-se o termo "objetivo", usado na definição acima do relativismo cognitivo, no sentido de "absoluto", poderia-se afirmar que "é relativista uma doutrina filosófica que recusa a aceitar o absolutismo de qualquer doutrina." 
Com efeito, o relativismo cognitivo ou epistêmico não afirma, conforme alegam os autores, que o relativista aceita que a "veracidade é relativa a um indivíduo ou grupo". Tal relativismo afirmaria outrosim que "o conhecimento é que é relativo a um indivíduo ou grupo". Óbvio porque se o conhecimento não fosse relativo, seria então absoluto, o que é inaceitável. Pois não se encontrou ainda um fundamento absoluto para o conhecimento humano. Aliás, esse é todo o problema da epistemologia atualmente, como veremos abaixo.

Mais à frente no texto os autores afirmam: "[...] não há dúvida de que a atitude relativista está em conflito com a ideia dos cientistas sobre sua própria prática." Afirmação da qual discordo. Talvez concordasse um cientista absolutista, pregando um certo cientificismo exacerbado.
Conforme sugere Gizêlda Melo do Nascimento em seu texto, a razão Iluminista, evoluindo para o cientificismo exacerbado, vai se afastando da concepção proposta por seus primeiros pensadores e, à medida que ganha espaço nos debates, vai se aproximando do centro de interesse do poder.
"Voltaire já nos punha de sobreaviso que viver no “melhor dos mundos” na Europa corresponderia a viver o inferno em outras plagas. O inferno pode ser aqui mesmo. E é exemplar o gesto do escravo ao exibir pé e mão mutilados denunciando o quanto custava, para os subjugados, a doçura do açúcar consumido pelos europeus. O ‘doce cativeiro’ exibia a sua perversão discursiva no corpo mutilado do escravo.
E aí está o ponto nevrálgico da razão iluminista; onde ela se contradiz e revela sua efemeridade. Por que vamos assistir, a partir de então, a uma pletora de correntes tradutoras de valores e práticas, alvoroçando exaustiva e obsessivamente os debates do século XIX. Darwnismo, Positivismo, Evolucionismo e tantas outras correntes desenvolvidas à luz da razão e da ciência, assumindo o palco das discussões advogando em favor do aperfeiçoamento da família humana.
Obsessões frenológicas, medições de crânios, de maxilares, de ventre: o corpo humano passando por uma frenética inspeção ao ser vasculhado, medido, dissecado a cada milímetro de sua compleição. Todo um esforço ergométrico como forma de explicar a superioridade de uns sobre os outros, para distribuir e justificar o lugar de cada um na escala das representações sociais, para assim respaldar o status quo. Assim como dantes, o desenho da pirâmide continua irretocável: no topo a elite (esta não mais eleita por Deus e sim por sua compleição física portadora de um crânio maior), na base ‘os outros’ (não mais para redimir seus pecados na terra, e sim porque portadores de deformidades, sobretudo a que se revela no crânio de menor tamanho)."
Esse cientificismo exacerbado, adubado por um relativismo moral mal compreendido, próprio da nossa era, pode ir facilmente contra os direitos humanos universais. Violado um deles e aceito socialmente, o perigo é generalizado, em primeiro lugar para a pessoa e, em seguida, para o conjunto social.
"[...] a ciência, ‘à luz da própria razão’, deixa de ser um espaço de investigação isento de julgamento para assumir a cegueira comprometida e comprometedora do discurso hegemônico. Afinada com o poder, seu discurso muda de espaço deslocando-se para o do debate ideológico. E o que em seu princípio constituía a procura da explicação da origem da humanidade com a premissa de aperfeiçoá-la e projetá-la num futuro melhor (para este homem viver para sempre no melhor dos mundos) tornou-se base para o estabelecimento de hierarquias dentro de uma escala da espécie humana. Hierarquia de classe, raça e gênero. Hierarquia e classificação constituem suas palavras de ordem. Assim procedendo, a ciência abandona de vez sua isenção e torna-se servil ao discurso ideológico. O poder sobe-lhe à cabeça."

Ora o relativismo epistêmico diz apenas que não é possível erigir uma teoria científica ao status de absoluta. Com efeito, etimologicamente, o termo "relativo" não se opõe a "universal", mas a "absoluto"; assim como o termo "relativo" não é sinônimo de "particular", que é o oposto de "universal".

Pode-se ser relativista ou absolutista quanto à razão teórica e/ou quanto à razão prática (I. Kant foi o primeiro a mostrar isso). Os autores do livro em questão referem-se exclusivamente à razão teórica (conhecimento e verdade) e não à razão prática (norma/valor). Entretanto é notável que ignorem ou omitam em seu texto que, no caso da razão teórica, pode-se ainda assumir uma postura relativista ou absolutista em relação ao conhecimento como também em relação à verdade.
Eu considero particularmente difícil ser relativista quanto à verdade, mas não quanto ao conhecimento. Aí está o problema que identifiquei no livro: os autores gastam mais de 300 páginas para demonstrar uma tese que ninguém minimamente informado aceitaria, i.e., que os relativistas são relativistas em relação à verdade. Ora, salvo por um ou outro relativista mais heterodoxo ou desinformado, e até onde eu saiba, a grande maioria, me incluindo nela, é relativista em relação ao conhecimento, mas não em relação à verdade. Que eu esteja escrevendo este texto agora, trata-se de uma verdade incondicional e eterna, ninguém que tenha me acompanhado na sua formulação poderia negar, a menos de se enganar, desconhecer ou se esquecer. Por outro lado, que o conteúdo que eu esteja escrevendo nele constitui um conhecimento, eu não recriminaria ninguém de duvidar.

Relativistas epistêmicos não acreditam que possa haver um conhecimento absoluto, ou seja, que o conhecimento possa ser fundamentado, absolutizado.
Cabe aqui uma precisão quanto ao vocabulário. O termo "fundamento" é entendido como algo que garante a validade do valor (Nietzsche). Ou seja, um fundamento é uma garantia "de direito", não apenas "de fato". Garantiria que uma coisa é a boa coisa e, ao mesmo tempo, a coisa verdadeira. Conjunção de valor e verdade.
Assim, podemos falar em "conhecimentos científicos", mas não há "verdades científicas" absolutas (Popper, tese da falsificabilidade). Há conhecimentos científicos particulares de algumas verdades, e isso ocorre porque o conhecimento só existe na norma da verdade, dada ou possível (Popper). Às vezes o cientista tem sorte, e sua teoria perdura por bastante tempo. O que faz o valor de uma teoria científica é o quanto ela se deixa bater empiricamente. Se for uma boa teoria científica, outras baterão sem sucesso, sem que se logre falsificá-la.
Há, eventualmente, até conhecimento que possa atingir o status de universal, embora ainda assim relativo, relativo ao homem, à espécie humana. Não há, entretanto, o conhecimento absoluto da verdade (apenas universal e relativo ao homem). Com efeito, o homem não é Deus. A menos que se aceite um certo humanismo kantiano transcendente. Kant fundamenta a razão no próprio homem, ou em alguma transcendência que fundamenta o homem (exegese polêmica de Kant). 
Em epistemologia, defini-se conhecimento como: uma crença verdadeira justificada. O problema da epistemologia se concentra todo no termo "justificada", da definição acima. O homem ainda não conseguiu pensar ou elaborar essa justificação de forma absoluta. Conseguirá um dia?

Para resumir, dependendo da doutrina filosófica a que se adere (Espinoza, Kant, Nietzsche etc), esses absolutismos/relativismos podem vir em par, ou em separado. Uma doutrina filosófica pode professar tanto um absolutismo teórico (epistêmico, cognitivo) quanto um absolutismo prático (normativo). Nietzsche é relativista nos dois aspectos (talvez venha daí sua fama de niilista). Kant é relativista apenas teórico (pois seu princípio "categórico universal" fundamenta a moral). Espinoza é relativista apenas prático; ele acreditava que temos acesso absoluto à verdade, é um absolutista epistêmico (quanto ao conhecimento e quanto a verdade).

Mas, voltando ao livro de Alan Sokal e Jean Bricmont, estes ao invés de adotarem o espírito luminoso de Espinoza, que poderia lhe servir de argumento, fazem prova de humor ingênuo e infantil. Seguem por uma perspectiva cientificista e formalista, sem interrogar seus pressupostos. Oferecem tantas interpretações equivocadas dos autores que analisam no livro que, para mim, este acaba se tornando contre-performant. Perdi a paciência, parei de ler.

Está claro, e os autores acima não discordariam, que a ciência nos oferece apenas aspectos parciais da natureza e do ser humano. Isso porque ela não pode penetrar profundamente dentro do núcleo de suas realidades e explicar suas causas últimas. Este conhecimento profundo sobre o homem e sobre a natureza, que dá sentido a todo o conhecimento parcial, nos fornece a metafísica, por meio de termos, conceitos e raciocínios. Mas também ele nos é oferecido pela espiritualidade, por meio de silêncios, vivências e experiências compartilhadas. Filosofia e ciência se complementam, a primeira ilumina a aplicação da segunda, como coração guia a razão. A esse propósito, ver como sabedoria e conhecimento podem ser erroneamente considerados antagônicos por grandes autores contemporâneos.

Para concluir, a sociedade dominada pela ideológica do cientificismo exacerbado é a do estado totalitário e desumano, tal como pregado por Platão. Nele a massa deve obedecer cegamente seus guardiães-filósofos. Nele não há espaço nem para a solidariedade e muito menos para a compaixão.