Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
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Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Dado, informação, conhecimento e sabedoria.

Em quê contribui a TI (Tecnologia da Informação) para o desenvolvimento de uma espiritualidade necessária à própria reflexão acerca de sua evolução? ou à ética de seu uso?
Me parece que o homem quebrará, neste século ainda, outros limites do imaginável em seu processo de criação. Porém, os horrores do século passado deixaram mais do que claro que a razão pura, ciência/tecnologia, não basta; precisamos aprofundar e fazer evoluir cada vez mais a razão prática, os valores. Mas como esta última pode evoluir? Qual é o papel da ciência e da tecnologia nessa evolução? se é que possa existir algum, já que parece impossível passar do conhecimento descritivo ao normativo. Da ciência à ética.
É possível lançar pontes para além do conhecimento, alcançando algum grau de sabedoria? A tecnologia pode nos ajudar nisso, como?

Em filosofia a pergunta (clássica) seria: "é possível passar da descrição ao valor?" e, classicamente, a resposta da filosofia a esta pergunta é, em geral, negativa: não há como explicar o surgimento de valores a partir apenas da descrição de processos naturais (da ciência), mesmo que apoiados na mais avançada tecnologia. Porém, em filosofia raramente (nunca) existe consenso. Sam Harris é um nome a contestar a negatividade desta resposta.

Distante do racionalista Sam Harris mas na mesma sintonia de pensamento, o místico Pierrre Weil denominou "Mutantes"[1] as pessoas que experimentam e vivem valor e verdade como uma coisa só. Nesse livro ele discute as etapas evolutivas da consciência humana, dividindo o processo de hominização em três fases. Num extremo está o ser Estagnante, no outro o ser Iluminado. No meio, entre esses dois extremos, está o ser Mutante. O ser mutante seria como uma ponte para um novo paradigma existencial (cf. o conceito de hominescência de M. Serres), onde desapareceria totalmente a ilusão metafísica das separações ser/mundo, sujeito/objeto, valor/verdade etc. e suas consequências (nefastas?) para o homem. Caminha-se então na trilha que vai do pensamento metafísico para o dialético ou pragmatista (de Kant para Dewey[2]).

De toda forma, voltando ao cerne desse post, na disciplina Sistemas de Informação, quando buscamos entender a natureza da relação que o homem constrói com suas máquinas, e consigo mesmo através delas, o conceito de Pirâmide Informacional é recorrente. Trata-se de uma complexa hierarquia, ou pirâmide, que relaciona os fenômenos dado, informação, conhecimento (explícito e passível de representação; ou tácito, i.e., empírico, advindo da experiência e de difícil representação) e sabedoria.

Esses fenômenos formam um todo. São dificilmente separáveis uns dos outros, mas podem ser distinguidos por nossa inteligência analítica. Tais fenômenos são todos interessantes, objetos de estudos aprofundados de uma nascente disciplina, a Filosofia da Informação (vide L. Floridi).

Quero, neste post, me ater a apenas um deles, a Sabedoria. Como definição do termo, esta me parece razoável: sabedoria seria o "máximo grau de lucidez, presente no máximo grau de felicidade" (C. Sponville). Somos capazes de experimentar algo assim? Estaria a humanidade, em sua evolução, trilhando esse percurso? Seria possível alcançar uma sabedoria que nos salve da auto-destruição, da aplicação da tecnologia sem preocupação ou reflexão ética?

Alguns filósofos disseram, e outros ainda dizem, que somos capazes disso, e sem cair no obscurantismo. Precisaríamos, contudo, para alcançar a sabedoria, desenvolver no caminho uma certa espiritualidade. Espiritualidade que pode até prescindir da religião, mas dificilmente poderia prescindir da comunhão em determinados valores. Leio que precisaríamos aprender mais sobre o Amor, e assim aprendermos a amar mais e a amar melhor. "Ciência é conhecimento organizado, sabedoria é vida organizada" (I. Kant). E é preciso ir além da experiência já que "esta não nos ensina sobre as essências das coisas" (B. Espinoza, em dito racionalista).

Comte-Sponville, filósofo francês contemporâneo, vai mais longe ao recusar o auxílio de qualquer religião, e diz em um de seus livros: "O Século XXI será o de uma espiritualidade laica ou não será nada". Ele exagera?
Embora a religião, baseada que está na esperança, possa atrapalhar o desenvolvimento de uma espiritualidade focada mais fortemente no amor e na fidelidade (e não na fé e na esperança), muitos ainda encontram nela o locus de possibilidade único para o desenvolvimento de qualquer vida espiritual. Ou daquilo que normalmente em sociedade nomeia-se 'vida espiritual'.

Acompanhando o pensamento de Sponville, uma espiritualidade laica não se fundamenta na esperança, que teima em nos desviar a vida do momento presente. Deve-se esperar por uma outra vida que não esta, prendendo-se ao passado ou ao futuro, mas não no presente, no agora. Esperar aquilo que não depende de si? qual o sentido? Mas daquilo que depende de si, para que esperar? o melhor seria agir. Fé ou fidelidade? Se o reino é para ser experimentado aqui e agora, para que ter fé?

A religião ocidental possui uma concepção acerca da eternidade que pode estar enganada. Uma eternidade como tempo linear, que não acaba... Outra concepção poderia ser a de eternidade como ausência do tempo. Apenas o presente existiria. O presente que se mantém presente. Pode-se pensar: "no agora, o passado não existe mais, e o futuro ainda não existe". Resta então apenas o momento presente, com a memória presente do passado e com os projetos que virão no futuro, apenas os que dependem de mim.
Mas é caminho difícil. Na maior parte das vezes em que estamos conscientes nos pegamos presos ao futuro, a esperar o que não depende de nós; ou presos ao passado, porque não conseguimos resolver nossas contas com ele (arrependidos, frustrados). 

Dados > informação > conhecimento > ..., sim, mas parece haver um hiato aqui, separando a sabedoria dos outros anteriores. Com efeito, as sociedades mais "bem resolvidas" sob o ponto de vista tecnológico e científico não parecem entretanto mais felizes, além de um limite constante. Pelo jeito, depois de termos conquistado tudo em nossas vidas, não nos sentimos mais felizes por isso.

Mas mesmo assim, esse poderia ser o destino do ser humano, uma evolução em direção à sabedoria? (cf. F. Hegel) Mesmo que seja possível, uma coisa parece clara: se nesse percurso ou evolução, que passa também por uma natural e forte humanização da tecnologia (i.e. sua apropriação definitiva pela Cultura), pararmos no patamar ou nível do conhecimento, e se esse patamar nos bastar, então talvez não sobrevivamos mesmo ao Século XXI. Não desenvolveremos nossa dimensão espiritual prática. Daí a premência da ética na ciência hoje, mas de uma ética não-Platônica. Uma ética desmstificada, que desafie a tradição das religiões monoteistas.

Como Sponville, também acredito que é preciso encontrar uma espiritualidade sem dogmas, laica. Paradoxalmente, a igreja pode nos abrir ou fechar para a espiritualidade. A espiritualidade nada mais é do que a vida do espírito em nós, ou seja a experiência da consciência em nós. É a relação entre o finito em nós e o infinito do universo, do temporal em nós com o eterno (ou atemporal). Se, por acaso, nos sentirmos fechados por dogmas, devemos nos libertar. Nos libertar dos conceitos incutidos muitas vezes pela igreja ou pela  tradição. Infelizmente, em sua maior parte, essas tendem a verbalizar ideologicamente a mensagem de Cristo. 

Com efeito, parece premente hoje buscarmos uma espiritualidade que nos previna, tanto contra o fanatismo quanto contra o niilismo, mas que não nos jogue no obscurantismo. No post Falando de Amor escolhi, para me instruir sobre o tema do Amor, as ideias de Sponville que versam sobre a história contada no livro Banquete de Platão - ou, "a propósito do Amor".

Segundo guias espirituais, como o contemporâneo Eckhart Tolle, a passagem do nível do conhecimento para o nível da sabedoria na pirâmide informacional, requer forte trabalho sobre o ego. Com efeito, parece que o ego nos impede de viver o "agora". Nos aprisiona no passado ou nos ilude com expectativas ou esperanças futuras. Porém, como podemos nos relacionar adequadamente com o outro sem um ego minimamente maduro. Nem o ódio nem o louvor ao ego, portanto.

Buscando subir na pirâmide e alcançar algum grau de sabedoria, parece que o conhecimento não é mais suficiente ou pouco importa. Muito menos a informação ou menos ainda o dado (parece haver um fosso que os separa da sabedoria). Além de um determinado limite, os nossos problemas individuais ou coletivos não parecem poder ser resolvidos com mais reflexão, mais racionalidade, com mais pensamento ou pensando mais fortemente (no sentido de um subjetivismo cartesiano, ou do racionalismo).
Talvez, na maior parte dos casos isso possa até atrapalhar, pois o mistério mais profundo do Ser não nos é dado conhecer, mas apenas sentir, experimentar (caberia reflexão sobre como a filosofia de Merleau-Ponty, fenomenologia da percepção, que pode ser útil aqui). Nesse sentido, pode-se citar Inácio de Loyola quando diz:  "Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir, experimentar e saborear todas as coisas internamente".

Um caminho? místico, racional? difícil dizer. Talvez buscando uma maior conexão com o momento presente e também com o outro (pessoa humana), possamos trazer alguma "energia cósmica" inerente à vida que possa nos ajudar. Uma sensação mística que às vezes, embora raramente, nos ocorre de ligação com o Todo; de que somos parte de um Todo muito maior do que nosso corpo ou nossa insignificante personalidade (experiência de unidade). O exercício de manter nossa consciência mais alerta, mais presente, mais atenta ao momento presente, me parece também um caminho (experiência de simplicidade).

Talvez essas experiências possam ser desenvolvidas a partir de um melhor entendimento acerca do papel do amor em nossa existência. Coração e razão não são duas coisas diferentes, mas formam um todo (que na modernidade Kant separou em suas obras críticas). Sente-se que é o coração que abre o Ser à razão, ao entendimento. A razão seria a guia, mas o amor é o motor, vem primeiro.
Se conseguirmos preservar essa conexão com o momento presente durante os nossos dias, ao realizarmos nossas tarefas do dia-a-dia, em nossos relacionamentos, então seremos mais tranquilos, serenos, mansos, mais em paz.
Talvez assim, não somente seremos capazes de atingir algum grau de sabedoria, como comporemos o conjunto, cada vez mais numeroso, de seres conscientes de que são dotados da energia positiva e criadora de vida no universo (seres Mutantes).

Mas, voltando ao início, em que contribui a TI para o desenvolvimento de uma espiritualidade necessária à própria reflexão sobre sua evolução e nossa evolução?

Alguns elementos para responder poderiam ser: imaginar como a Internet e a Web quebram os limites do tempo/espaço, e ideias (memes) iluminadas, de pessoas mais sábias, de raciocínio claro, passam a ter divulgação universal e imediata.
Na medida em que a Web vai ficando mais e mais semântica, não apenas essas ideias estão à disposição, como estão relacionadas entre si formando estruturas, grafos de conhecimento. Nesses novos sistemas de conhecimento, as ideias competem entre si, já que todas as ideias são imediatamente relacionadas pelos mecanismos de navegação, busca e recuperação de informação cada vez mais poderosos.

Claro que o mal está também presente entre nós. Antes de nascer, ainda no ventre de nossa mãe fazemos parte do Todo. Ao nascer somos separados desse todo, ganhamos aos poucos uma consciência. Com esse movimento nos tornamos então expostos ao mal, assim como ao bem. Pecar seria escolher o mal. É porque o mal existe, em cada um de nós, que precisamos nos esforçar e participar da construção do bem. Abracemos a glória e não a miséria humana em nós (B. Pascal).

Precisamos espalhar e alargar a comunidade dos "Mutantes" de Pierre Weil (Universidade da Paz) e tantos outros sábios; mas este é outro assunto.


[1]Pierre Weil. “Os Mutantes – Uma Nova Humanidade para um novo milênio” (Ed. Verus).
[2]Richard Rorty. “Kant contra Dewey: a situação atual da filosofia moral” (Filosofia como Política Cultura, ed. Martins Fontes).

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