Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
"
Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Mensagem de Natal 2011

"[…] sabedoria para chegar aonde alguns já chegaram, um lugar de ritmo mais lento, de saborear verdadeiramente a vida, de simplificar as coisas."

Esse desejo de uma amiga é também um sonho bom que devemos e podemos realizar. Se a sabedoria é inalcançável, parece haver entretanto sábios. Pessoas que sabem que a sabedoria é inalcançável, e que é apenas um caminho, difícil e longo a trilhar. (antes que façam piada, vai sem dizer, eu não me incluo obviamente entre eles, e estou muito longe disso, preso que sou às limitações de minha humanidade).

Essa amiga pergunta em sua mensagem de Natal: o que viemos fazer neste nosso mundo, afinal?

Respondi então a ela que eu acredito que vivemos pelo mais extremo acaso; que algo que não pedimos e que mesmo assim obtemos é o que chamamos uma "graça", e é o que é a nossa vida: uma graça. A mais preciosa!  falei também já que estamos aqui e existimos por alguns anos, que seja esse um tempo alegre. De uma alegria atenta (alerta mesmo), sobretudo para com o outro: uma alegria amorosa.
A esse propósito citei L. Boff se referindo à ética (do amor):
"O ethos que ama funda um novo sentido de viver. Amar o outro é dar-lhe razão de existir. Não há razão para existir. O existir é pura gratuidade. Amar o outro é querer que ele exista, porque o amor faz o outro importante. Amar uma pessoa é dizer-lhe: tu não morrerá jamais (Gabriel Marcel). Quando alguém se faz importante para o outro, nasce um valor que mobiliza as energias vitais. É por isso que, quando alguém ama, rejuvenesce."

E a mensagem dessa amiga continuava "[…]Não acho que a prioridade tenha que ser o lazer, mas é um item considerável. Acho que dependemos de $$ para sobreviver, mas, então, que o trabalho necessário para consegui-lo seja prazeroso, mas não o único prazer na vida e, muito menos que o $$ seja o único prazer. Espero conseguir equilibrar minhas atenções a mim, ao marido, aos filhos, aos amigos, ao trabalho, ou seja, espero aprimorar em muito o jogo de cintura que tenho tentado ter, pois, afinal, equilibrar não é ficar estático, mas oscilar para não cair."

Ser capaz de encontrar ou descobrir esse prazer em nosso trabalho significa, pelo menos para mim "informático", antes entender melhor o que é o computador. Daí escrevi o texto que segue abaixo, e compartilho com vocês.

No mais eu queria agradecer a todos vocês pelos abraços e pelas mensagens de atenção e carinho quando da perda de meu pai em novembro último e também dizer que: fundar o sentido de minha vida nesse ethos (descrito acima por L. Boff) é o que eu acho que todo o mundo mais precisava nesse início do Século XXI. Como este é o meu desejo para mim mesmo (embora me veja tristemente limitado para realizá-lo profundamente) é também o que desejo para todos vocês; que possamos viver esse ethos, meus companheiros de trabalho, neste Natal!

Abraços,
Marcello P. Bax


O computador

O que é o computador? Muitas coisas, mas antes de tudo é um artefato; uma construção nossa.
E como todo artefato - objeto não natural - ele é também uma projeção do nosso Ser, natural.
Nós nos projetamos neles e eles nos projetam a nós mesmos, nossa natureza, de volta.
E isso é importante porque permite entendermo-nos melhor, por meio daquilo que é a nossa criação (do homem).
Perceba como uma cadeira, outro artefato humano, tem sua ergonomia própria como uma adaptação ao nosso corpo, que é o que é, que dobra do jeito que dobra.

O que ele, o computador, tem de especial em relação aos outros artefatos?
Me agrada pensar que, como todos os outros, ele nos retorna a nós mesmos, como que um espelho; mas, diferente de uma cadeira, ele o faz melhor que todos os outros, e mais profundamente. Não é agradável pensar que ele nos liberta de boa parte de nosso trabalho repetitivo? que nos permite dedicarmo-nos mais tempo ao desenvolvimento de nosso espírito, nossa criatividade, nosso destino de hominização?

Digo-lhe que o que me tira do sério, em minha vida, é ter que fazer, eu próprio, o trabalho repetitivo que ele poderia fazer por mim.
É nessa simples consideração que eu encontro boa parte, ou talvez todo o meu interesse pessoal pela informática: com a ajuda do computador somos capazes de automatizar o que há de mais repetitivo em nossas tarefas diárias, bem como os processos repetitivos e necessariamente burocráticos de nossas organizações e empresas. Assim podemos nos libertar deles, e de sua opressão "tarefeira".

Dessa forma, se utilizado com sabedoria, o computador nos torna mais produtivos, nos liberta e nos potencializa para criar; ainda mais, ainda melhor.
Seremos mais humanos, quanto mais poderosas máquinas eles forem, já que nunca se hominizarão!
Mas, se usados sem sabedoria, contudo, não serão mais do que verdadeiras armas a nos desumanizar.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

"Inteligência Empresarial" existe isso?

Proponho neste ensaio tecer uma reflexão sobre o termo "Inteligência Empresarial". A figura abaixo, retirada de uma revista, compara a inteligência humana com a inteligência empresarial.

Sempre tendi a considerar esse termo "Inteligência Empresarial", bem como outros do mesmo gênero, como que pertencente à classe daqueles jargões que caracterizam um certo "consultês" linguístico, como se diz familiarmente. Ou seja, palavra um tanto quanto vazia de significado quando examinada de mais perto. Essa tendência explica-se pois afinal, usamos conceitos como "inteligência" fazendo, em geral, referência à uma dada característica própria de organismo físico, vivo, particular e concreto. Ora, como algo que é abstrato: um grupo, um conjunto, uma organização, uma empresa poderia manifestar, ele mesmo, comportamento inteligente? 


Fica então a pergunta: quem usa o termo "Inteligência Empresarial" está abusando do uso da lingua, ou não?

É o grupo, a empresa, que é mesmo inteligente? ou seriam as inteligências individuais (das pessoas concretas) que quando colocadas em relação umas com as outras, compõem aquilo (algo abstrato) que envolve a todos?  Como que constituindo um ambiente, um "clima" organizacional?
E quanto a este último, possui alguma existência própria e real? Se sim, admitindo-se que possua, essa existência não é certamente concreta. Ela pode ser sentida, percebida, embora seja abstrata. Seria então uma espécie de energia, de comunhão de valores, percebidos e compartilhados?

Ou seja, não parece equivocado afirmar que quando se fala em "Inteligência Empresarial" não é propriamente a empresa em si que é inteligente, mas sim o todo constituído por suas partes, seus colaboradores que juntos são mais que a simples soma das partes; i.e. são as pessoas que se comportam com inteligência e, em comunhão nos mesmos valores, alimentam-se elas próprias de um ambiente inteligente. 

Indo ao socorro da Filosofia para melhor entender o fenômeno, lembrar-se-á uma de suas controvérsias antigas: a dos "universais" versus "particulares". Muito presente na Idade Média e ainda hoje discutida, como se vê.

Particulares x Universais
Existem apenas particulares, eis o significado da posição nominalista, ou do Nominalismo. Esse último o dicionário diz tratar-se de uma doutrina filosófica segundo a qual o conceito é apenas um nome acompanhado de uma imagem individual, um ente particular. Os universais (espécies, gêneros, entidades) são apenas puras abstrações, sem realidade (O Nominalismo opõe-se ao Realismo, que prega a existência dos universais). 

Assim, influenciado pelo Nominalismo (só particulares existem), a pergunta que eu me fazia no início do texto é: como é que um grupo de pessoas poderia constituir um organismo físico, vivo? capaz de ser considerado inteligente? É certo que quem vive e então pode apresentar inteligência, em última análise, são as pessoas, os animais, individualmente, particularmente.

Obviamente o grupo não é algo físico, ou vivo. O grupo é algo universal, abstrato e logo não faria sentido usar o termo "inteligência", ou mesmo qualquer outro adjetivo antropomorfizante para designá-lo.

Contudo, percebe-se claramente, com o auxílio do paralelo feito na figura acima, pelo Prof. Eugênio Mussak, que pode haver sim um "clima" em qualquer organização empresarial. E é exatamente porque ele existe e é bem real, que é preciso cuidar dele, alimentá-lo. 

Adotar uma postura nominalista ou realista nesse caso? É realmente controverso, admitamos. O que me parece certo, entretanto, é que pessoas pertencentes a qualquer empresa (por exemplo) vivem no grupo e que esse relacionamento com outras e também com o ambiente físico (instalações) as afetam direta e fortemente e obviamente não podem ser desconsiderados.

Empresa inteligente: empresa que aprende! 
Se a empresa são as pessoas e as pessoas aprendem, poderia a empresa prender? O grupo é mais que a soma de seus componentes? Com efeito, como vimos a pergunta não é nada cretina pois se alguém chamar pela empresa após o expediente, quando todos já tiverem ido embora, não haverá resposta alguma. Concretamente a empresa não existe como entidade extensa no mundo.

Então o que é uma empresa inteligente (ou uma inteligência empresarial, conceito usado na figura)? Pode-se dizer que seria uma empresa que aprende. As pessoas de uma empresa que aprende, uma empresa "inteligente", são envolvidas nos processos decisórios, tem acesso às informações e sentem-se assim parte integrante do negócio. Nas palavras de um amigo, uma empresa inteligente é "uma empresa onde as pessoas fazem parte (estão em um grupo), são parte (sentem-se parte do grupo, pois são ouvidas) e têm parte (participam dos resultados)." Ou seja, uma empresa onde há o estabelecimento pelos gestores desta espécie de estrutura comportamental (a princípio exclusivamente humana) aprende sim e evolui. Como estas são características essencialmente humanas, então me parece legítimo utilizar-se o termo "Inteligência Empresarial".


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Hermenêutica

Hermenêutica é um ramo da filosofia que estuda a teoria da interpretação, que pode referir-se tanto à arte da interpretação quanto à teoria da interpretação. A hermenêutica se refere ao estudo da interpretação de textos escritos, especialmente nas áreas de literatura, religião e direito. Numa visão contemporânea, engloba não somente textos escritos, mas também tudo o que entra em jogo no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não-verbais de comunicação. A hermenêutica refere-se principalmente à teoria do conhecimento de Hans-Georg Gadamer, tal como desenvolvida em sua obra "Verdade e Método" (Wahrheit und Methode), e algumas vezes na obra de Paul Ricoeur (texto inspirado de verbete da wikipedia, consultado em outubro de 2011).

A interpretação de qualquer coisa envolve uma certa compreensão e eventualmente ser capaz de explicar essa coisa.

Sobre a diferença entre Explicação e Compreensão.
Segundo W. Dilthey, estes dois métodos de interpretação estariam opostos entre si. Explicação, própria das ciências naturais e compreensão, própria das ciências humanas e sociais, ciências do espírito:
    "Esclarecemos por meio de processos intelectuais (racionais), mas compreendemos pela cooperação de todas as forças sentimentais presentes na apreensão, pelo mergulhar das forças sentimentais no objeto." (Wilhelm Dilthey).

Paul Ricoeur, filósofo francês que trabalhou áreas da fenomenologia e da hermenêutica, visou superar esta dicotomia. Para ele, compreender um texto é encadear um novo discurso no discurso do texto. Ler é apropriar-se do sentido do texto. De um lado não há compreensão/reflexão sem meditação sobre os signos; do outro, não há explicação sem a compreensão do mundo e de si mesmo.

Essa contribuição de P. Ricoeur, que vence a dicotomia entre razão pura e prática, parece-me útil para ponderar sobre a natureza do processo de "tomada de decisão". Como tomamos uma decisão? no trabalho, em nosso dia-a-dia? Qual é o papel da razão e qual é o papel do coração em uma tomada de decisão? Pois P. Ricoeur parece estar dizendo que os dois estão juntos, sempre, inseparáveis. Nossas chances de errar, e tomar uma decisão equivocada aumentam se os considerarmos como dois absolutos, separados.
Eis a sequência temporal: e moção (produto involuntário do corpo), pensamento (a emoção atinge a conciência), razão/explicação (julgamento). Se assim for então Espinosa tem razão: "não é porque eu julgo que uma coisa é boa que eu tendo em sua direção, mas porque eu tendo em sua direção que eu a julgo boa".
Curiosamente encontrei a mesma questão, por acaso, em um diálogo entre o mestre Svami Prajnanpad, sábio indú, e seu aluno Daniel Roumanoff. Em uma das passagens o mestre  diz: "Sentir d'abord, puis décider, ensuite agir. Mais ce sentiment doit être un sentiment e non pas une identification émotionnelle." (do livro "Vers La Réalisation de Soi", Ed. Accarias L'Originel). "Primeiro sentir, depois decidir, em seguida agir. Mas o sentir deve ser um sentimento e não uma identificação emocional".
O que deixa claro como a razão aqui é considerada também como um afeto do corpo (vide Spinoza) e não como uma abstração instrumental de uma razão que se pretende "desembarcada", fora do corpo (no sentido do que pregava a dualidade Cartesiana).
Mas como um sentimento pode ser diferente de uma "identificação emocional"? Essa última se refere à identificação daquilo que está na ordem da intuição com algo que está na ordem do conceitual, de um conceito. Ora o que Prajnanpad parece querer dizer não é que tal identificação não deva ocorrer, mas que ela deve apenas ocorrer na fase posterior da decisão: "..., puis décider, ...".

Isso parece sugerir um ponto crucial para o nosso tempo ou sociedade contemporânea: toda decisão carece de um tempo (um tempo para "sentir"), toda decisão bem tomada não virá necessariamente sem um tempo adequado para a fase do "Sentir".
Esse sentir é anterior e mais interior (na ordem do conhecimento) do que a fase seguinte (da decisão), i.e., da identificação emocional, que já é conceitual, ou seja de ordem informacional.
A consideração desta passagem no diálogo referido me parece reforçar a reflexão de P. Ricoeur.

Indo além, recordo-me ainda de Santo Agostinho, que dizia: "Creio para enteder...". Mas não detalharei esse ponto agora. Fica para outro post

segunda-feira, 13 de junho de 2011

As quatro ordens

Tentei reproduzir abaixo, o mais fielmente possível, as ideias propostas pelo filósofo André Comte-Sponville sobre as 4 ordens.

"Se colocar o problema do limite é perguntar o que não é permitido.

1. A ordem econômica, técnica e científica 
Podemos começar por exemplo, nos perguntando sobre os limites que devem ser definidos para as ciências da vida. A biologia pode dizer quais são os fatores genéticos tecnicamente possíveis, mas não é o seu campo dizer que esses são ou não permitidos. Assim é para a economia de mercado.
Tem-se aqui um primeiro domínio, o domínio econômico-técnico-científico, estruturado internamente pela oposição entre o possível e o impossível. Deixado à sua
única e exclusiva espontaneidade, ele realizaria o que o biólogo Jacques Testart chamou de "uniquematie do universo técnico", cujo princípio é que tudo será feito, desde que a anarquia tome conta. No entanto, o possível torna-se particularmente assustador hoje. Por conseguinte, é necessário limitar esta tecno-ciência, e limitá-la do exterior, já que ela é incapaz de limitar-se.

2. A ordem política e jurídica
Então eu apresento uma segunda ordem, a ordem da lei e da justiça, estruturada internamente pela oposição de legal e ilegal. Ela também é incapaz de se limitar, e isso é necessário por duas razões:
- Uma razão individual: uma pessoa que respeitasse escrupulosamente a lei país onde vive, mas que se contentasse com apenas isso, poderia muito bem mentir, ser egoísta e má. A lei não a impediria tal comportamento, obviamente. Não se tem nada nessa ordem, nem na primeira, para escapar ao fantasma do "bastardo legalista" e, talvez, também cientificamente competente.
- Uma razão coletiva: alguns anos atrás, na Sorbonne, propus como tema de dissertação em filosofia política: "O povo teria todos os direitos?" Quase todos os alunos responderam que em uma democracia, o povo é soberano e ele tem todos os direitos, já que é ele que faz o direito. A conclusão lógica desta posição é que pessoas têm direito a medidas antidemocráticas.


3. A ordem da moral
O campo que limita a política e a justiça é aquele da moral, estruturada internamente pela oposição entre o bem e o mal, do dever e do proibido. Parece que a moral não precisa ser limitada: como é que seria algo "ético demais"? Mas essa ordem pode e deve ser completada, porque ela é insuficiente. Um indivíduo que fizesse sempre o seu dever, e apenas o seu dever, seria um fariseu, careceria de uma dimensão talvez essencial: o amor.

4. A ordem do amor
Daí uma quarta ordem: ordem da ética, a ordem do amor, que não se limita à ordem da moral, mas a completa, a abre pelo alto. Eu chamo o que fazemos por dever, de moral. A ética é o que fazemos por amor.

Eu não vejo bem o que poderia ser colocado acima do amor. Um crente pode considerar uma quinta ordem, a ordem do divino, o que garantiria a coesão do todo. Mas a fé é uma possibilidade que eu não posso fazer minha, e que eu não sinto falta, porque o amor infinito não é a temer, por duas razões: nós não desejaríamos nada melhor, e ele não é a nossa maior ameaça.

Pretender que o capitalismo seja moral, portanto, seria afirmar que a primeira ordem seria submetida à terceira, que eu acho que é excluída pela estrutura interna de cada uma dessas ordens: o possível e o impossível não tem nada a ver com o bem nem com o mal. 
Imagine a reação de um físico, que ao explicar-lhe a equação de Einstein: "E = mc2", e que você argumentasse que isso não é muito moral, porque detonou bombas atômicas. Ele responderia que vocês não falam da mesma coisa.

Na ordem econômico-técnico-científica, nada nunca é moral. Nada é imoral, porque, para ser moral, deve ser imoral. Tudo é amoral, o que significa que a moralidade privada é irrelevante explicar um processo que se desenrola nesta primeira ordem.
 

Para a pergunta: é o capitalismo Moral? Eu respondo isso: obviamente que não. Porque ele é radicalmente e permanentemente amoral. Se quisermos ter uma moral numa sociedade capitalista, essa moralidade deve vir de outro lugar que o mercado."

domingo, 12 de junho de 2011

A presidente ou a presidenta?

A presidenta foi estudanta? Existe a palavra: presidentA? Que tal colocarmos um "BASTA" no assunto, Presidenta? Mas, afinal, que palavra é essa totalmente inexistente em nossa língua?

Bem, vejamos: no português existem os particípios ativos como derivativos verbais. Por exemplo: o particípio ativo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante...
Qual é o particípio ativo do verbo ser?
O particípio ativo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade. Assim, quando queremos designar alguém com capacidade para exercer a ação que expressa um verbo, há que se adicionar à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte.

Portanto, à pessoa que preside é presidentE, e não "presidentA", independentemente do sexo que tenha. Se diz capela ardente, e não capela "ardenta"; se diz estudante, e não "estudanta"; se diz adolescente, e não "adolescenta"; se diz paciente, e não "pacienta".

Texto de Miriam Rita Moro Mine
Universidade Federal do Paraná

sábado, 11 de junho de 2011

Até que ponto a informação nos revela a verdade?

Resenha do Capítulo "A verdade e nós" do livro “Valor e verdade: estudos cínicos”, de André Comte-Sponville.
O livro reúne “doze estudos que têm em comum versar sobre um mesmo objeto, que é a relação entre valor e verdade”.

O autor estrutura seu texto em torno das três perguntas fundamentais com as quais I. Kant define a filosofia:
  1. "O que podemos conhecer?" questionamento respondido pelas disciplinas: epistemologia e ontologia. Esta última pergunta: "o que há? para podermos conhecer"; 
  2. "O que devemos fazer?" objeto de estudo da filosofia moral (ética); e 
  3. "O que podemos esperar?" problema refletido pela metafísica e pela espiritualidade. A metafísica o aborda por meio de termos, conceitos e raciocínios. A espiritualidade por meio de experiências e vivências às vezes compartilhadas. 
À luz desse esquema teórico, Comte-Sponvile analisa a nossa modernidade.

O que é a verdade para o cientista? se para o filósofo a resposta pode variar, para o cientista a verdade é, no mínimo, tudo aquilo que se sabe cientificamente hoje; mesmo que o futuro a revele sempre incompleta e as vezes equivocada.

Nossa modernidade teórica (o que podemos conhecer?)
Aprendemos a distinguir nossos conhecimentos (relativos, parciais, provisórios) da verdade (eterna e absoluta). O próprio progresso do conhecimento e da lucidez epistemológica nos desiludiu desse ideal. A identidade entre o ser o e conhecimento nos é vedada - não apenas de fato, como de direito e definitivamente - pelas próprias condições que tornam esse conhecimento possível. O pensamento só pode se identificar com seu objeto na medida em que primeiro o constitui como objeto (de conhecimento), o qual não é o ser. O real é velado ou distante, embora estejamos dentro dele. Lição da física quântica (Bohr, Heisenberg), bem como da epistemologia contemporânea (Popper). Mesmo antes, Montaigne e Pascal já diziam: "Não temos nenhuma comunicação com o ser". Nunca conheceremos o verdadeiro a não ser indiretamente, pela mediação do falso, que às vezes sabemos detectar. Nenhum contato absoluto com o absoluto: o ser nos contém, mas nem por isso saberíamos contê-lo adequadamente.
Quer isso dizer que não há verdade, como às vezes ouve-se falar? Claro que não: se nada fosse verdade, não seria verdade que não há verdade, e é por isso que a proposição "não há verdade" se auto-destroi. A verdade é o que diferencia nossos conhecimentos de nossas convicções ou opiniões. Kant separava três ordens de pensamento. O "saber":  como um pensamento subjetiva e objetivamente suficientes; de uma "convicção": um pensamento subjetivamente suficiente mas objetivamente insuficiente; de uma "opinião": um pensamento tanto subjetiva quanto objetivamente insuficientes.
Postulado da razão teórica, que garante algum racionalismo: há verdade já que há conhecimento. Só há conhecimento na norma da verdade dada ou possível.
Com isso não se altera a concepção semântica da verdade. Como diria Tarski, a verdade de uma proposição consiste sempre em sua correspondência com a realidade. "A proposição 'a neve é branca' só é verdadeira se a neve é branca"; mas isso não altera o estatuto ou o alcance ontológico do conhecimento (o ser, para ele, está fora de alcance, ou só poderia ser atingido indireta e aproximadamente). Pode haver verdade em nossos conhecimentos, mas nossos conhecimentos não são a verdade, nem poderiam identificar-se com ela. Este é o abismo que funda nossa modernidade teórica.

Nossa modernidade prática (o que devemos fazer?)
Separação entre valor e verdade. Classicamente os filósofos consideravam que o verdadeiro e o bem andavam juntos: que o verdadeiro era o bom e o bom era o verdadeiro.
Aristóteles (em Metafísica): "É porque algo é bom que este algo nos parece desejável, em vez de este algo nos parecer bom porque o desejamos: o princípio é o pensamento; ora, o intelecto é movido pelo inteligível..." Como desejaríamos o que não conhecemos? E por que desejaríamos conhecer se a verdade não fosse boa?
"Tudo o que é, é bom", dirá Santo Agostinho; "o bem e o ser são uma única e mesma coisa", dirá são Tomás; e o mal nada mais é que uma privação ou que um ser menor. Deus é a verdade que faz norma: graças ao que nossos valores são verdadeiros, graças ao que nossas verdades valem. Isso durou uns dois mil anos, e fez uma civilização - a nossa civilização judeo-cristã.
Descristianizando-se o Ocidente, foi necessário porém procurar outra coisa. O que primeiro se encontrou foram deuses substitutos: a ciência depois a história, ou antes, os que diziam seguí-la pretenderam assim conjungir por sua vez o verdadeiro e o bem, o ser e o dever-ser, a verdade e o valor. Daí essa religião da Ciência, que foi o cientificismo, ou essa religião da História, que foi o marxismo.
Dizia Hegel: "O mundo real é tal como deve ser", "o verdadeiro bem, a razão divina universal é também a potência apta a se realizar. Esse bem, essa razão, sob a sua representação mais concreta, é Deus".
Esses ídolos não existem mais. Quanto mais as ciências progridem, mais parece que eles são incapazes de resolver qualquer problema normativo. As ciências não comandam; as ciências não julgam. As ciências não poderiam portanto substituir nem a religião, nem a moral, nem a filosofia. Incapazes que são de nos prescrever o que fazer. Assim as ciências ou a história não nos dizem mais sobre o bem. Conhecer não é mais julgar; julgar não é mais conhecer. Os conhecimentos cessaram de erigir-se em norma; os valores cessaram de ser verdadeiros. Nossos valores não se fundam mais em nossos saberes. Em que fundá-los então? No desejo. É preciso inverter a proposição de Aristóteles: "uma coisa nos parece boa porque nós a desejamos, e não o contrário: só desejamos porque ela nos parece boa" (Espinosa). O Verdadeiro não é o bem: nenhum bem é verdadeiro. É mais um abismo que funda nossa modernidade prática. O que vale não é o que conhecemos, mas o que desejamos, queremos e amamos. "A justiça não existe, é por isso que é preciso fazê-la" (Alan).

Nossa modernidade espiritual (o que podemos esperar?)
Amar a Deus, se nele cremos, era amar a Verdade que nos amava - e a verdade era, assim, tanto mais amável quanto a sabíamos infinitamente amante! Mas eis que a verdade, sem se abolir, cessa de se fazer passar por amante, em outra palavras, Deus morre. Eis que nos anunciam, não que não há mais verdade, mas que ela não nos ama, que é indiferente a tudo, isto é, a ela própria! Divórcio entre amor e verdade. Conhecer não é amar; amar não é conhecer. Quantas verdades odiosas! Quantos erros amáveis! modernidade espiritual: nem mesmo a verdade é Deus!
Devemos por isso nos afogar no niilismo e na sofística? Somos capazes de amar a verdade apesar de tudo, ainda que ela não corresponda às nossas esperanças. É possível que a verdade seja triste?
Ainda que ela não nos corresponda, saberemos aprender a amá-la sem retorno, de um amor desinteressado, amar em pura perda, a amar solitariamente, desesperadamente (sem esperar)?
Não que seja preferível. Quem não prefere ser amado? Quem não gostaria que esse amor fosse a própria verdade? Desde quando é preciso ser amado para aceitar amar? O amor é uma alegria que acompanha a ideia de uma causa externa (Espinosa), e a única: a verdade só é alegre para quem ama conhecer, só é triste para quem fracassa em amar.
Não há portanto que escolher entre o conhecimento e o amor. Amar e conhecer são duas coisas diferentes, mas não incompatíveis nem separadas: o desejo de verdade pode encontrar a verdade do desejo. O conhecimento do amor pode confortar o amor ao conhecimento. Seria preferível que nos bastasse amar para conhecer ou conhecer para amar. É por isso que os dois são necessários, um não podendo substituir o outro e não podendo se unirem de outro modo que em nós, contanto que amemos o verdadeiro, contanto que conheçamos o amor. Que isso seja pouco, que esperávamos outra coisa (a conjunção do verdadeiro e do bem, da verdade e do amor)... mas não se trata de esperar, mas de viver, e azar o nosso se é difícil. Precisamos de coragem.

Por uma política do pior. Brasil sem miséria! A social democracia entre o conservadorismo e a utopia.

"La politique n’est pas là pour faire le bonheur des hommes.
Elle est là pour combattre le malheur"

Comte-Sponville
A sugestão não é que se "busque o pior", como diz o dicionário, "para dele tirar partido!". Essa seria a pior das políticas. Esperar o melhor do pior é ainda esperar o melhor, e é por isso que a política do pior, nesse sentido tradicional, não passa de mero otimismo. Afinal por que o pior não perduraria? Seria a política mais ineficaz para um povo (Tiririca: pior não fica?). A história revela que não são os mortos de fome que fazem as revoluções, nem os mais miseráveis que triunfam da miséria.

No sentido tomado aqui, trata-se de uma política que em vez de querer realizar o melhor, se atribui a tarefa de enfrentar o pior. Ou seja, uma política, não do melhor regime possível, como ideal ou utopia, mas do maior mal real, como obstáculo a vencer; problema a superar.

Quando se renuncia à utopia, pode-se acreditar que não há mais nada a fazer senão conservar o que existe, isto é, gerir a sociedade existente. Essa tentação tão fortemente percebida na política do PSDB é uma posição tão mortal quanto a posição utópica. É necessário conservar e transformar, toda política atua entre esses dois polos; é o que dá sentido à oposição entre os conservadores e os progressistas. Compreende-se que os que mais sofrem com a sociedade atual tenderão a ser progressistas, assim como os que mais benefícios nela encontram tenderão a ser conservadores.

Saber o que queremos é menos saber qual seria a melhor sociedade possível (utopia) do que saber o que há de pior na sociedade real que queremos mudar. Trata-se portanto de opor o conhecimento do real à imaginação do ideal e a urgência do pior à espera do melhor. A política do pior, nesse sentido, não busca o pior, claro, mas pára de negá-lo ou de imaginá-lo anteriormente derrotado: ela o vê, ela o pensa, ela o enfrenta. É o contrário da utopia e o antídoto do idealismo. Na medida em que prentende conjugar o verdadeiro e o bem (o que só ocorre em Deus), o idealismo abre caminho para a religião na política, e toda religião, dizia Lucrécio, é portadora de crimes.

A política do pior não se contenta portanto apenas em conservar ou administrar mas também transformar: não se trata de realizar (utopia) ou de manter (conservadorismo) a melhor sociedade possível, mas de transformar a sociedade real mediante a supressão ou a redução do pior. 

A gestão é uma grande necessidade. As grandes necessidades, no mais das vezes, são pequenas coisas, mas que nem por isso são menos necessárias... A questão que se coloca a nossos dirigentes é a seguinte: a gestão, muito bem; mas é o que você faz com o pior? Ao enfatizar a importância da gestão e contentar-se em ser bom gestor (programa "Choque de Gestão" em Minas), faz-se a política do "menos mal". Enquanto isso, o governo petista faz a política do "pior" (bolsa família, brasil sem fome etc.) e, aos poucos, vai tranformando a sociedade brasileira.

Política do pior: política do saber, da vontade e da ação! É o contrário da utopia, que é a política da imaginação, do desejo e da esperança. Pelo menos no seu início. Depois, ao fracassar ou querendo se realizar, se submete por sua vez às exigências da política. E o sonho torna-se então pesadelo. É preciso sonhar, tudo bem; mas não tomar o sonho por um conhecimento nem, principalmente, por um programa. A política do pior supõe que não confundamos nossos sonhos com a realidade.

Mas e concretamente? Como é essa política do pior? Ela já era uma política do real na França de Simone Veil, em 1975. A lei Veil é um forte exemplo da política do pior. Não importa o que se pense do aborto, do ponto de vista moral, essa lei é hoje um quase consenso naquele país (à parte a extrema direita).
Com efeito, ninguém pode decidir no lugar das mulheres ou dos casais envolvidos, sobre esse tema.
Uma lei como essa é o contrário de uma utopia: todo aborto é um fracasso; todo aborto é uma desgraça. Na melhor das sociedades possíveis, o aborto não existiria: o amor e a contracepção bastariam. Muito bem, mas deveríamos então esperar? A questão é menos saber como uma sociedade ideal lidaria com o aborto (já que numa sociedade ideal a questão nem se colocaria), mas o que se considera pior: abortos clandestinos, com o risco que se sabe, ou abortos descriminalizados praticados no ambiente hospitalar? em vez de esperar ou prometer o melhor possível (o desaparecimento do aborto!), suprimiu-se a pior realidade (o aborto clandestino!). Isso é o que se chama mudar, e é para isso que serve a política.

Outro exemplo, a Renda Mínima de Inclusão (implantada na Dinamarca em 1933 e França em 1988). De novo, é o contrário de uma utopia: numa sociedade ideal, haveria nem miseráveis nem excluídos, logo ninguém a incluir. Seja. Mas vamos esperar? Podemos? Devemos? Em vez de sonhar ou anunciar uma sociedade em que a miséria teria desaparecido (o futuro radioso, a justiça, a prosperidade...), os deputados desses países preferiram enfrentá-la como tal e considerar que ela fazia parte, na sociedade, do que havia de pior. Política não do melhor possível, mas do pior real.
Não que isso resolva tudo, nem que não se podia fazer melhor. Constato que essas leis mudaram efetivamente alguma coisa, no sentido correto, e que elas são nisso, um exemplo da utilidade da política. A política não serve para administrar (muito embora não haja política sem gestão), mas para mudar (ou, conforme o caso, para combater a mudança), e isso é uma coisa que um administrador faz dificilmente.

A "política do pior" não deve ser confundida portanto, com uma "política do mal menor", se se entender por isso uma política que se contentaria com não agravar a situação (quando se trata evidentemente de melhorá-la) ou com não fazer o pior (quando se trata não apenas de não fazê-lo mas de enfrentá-lo). Uma política do mal menor seria o menos possível de política (uma política da menor política!) e o triunfo, novamente, da pura gestão. Uma política do pior, ao contrário, é necessariamente uma política da transformação (trata-se de não mais suportar o pior), o que supõe um "plus" de política: é sempre necessário mais vontade e combates para transformar do que para administrar. Mas esse "plus" é a própria política, ou pelo menos o que lhe dá sua urgência e sua dignidade.

Texto inspirado a partir de "Uma política do pior? (O socialismo entre conservadorismo e utopia) de Comte-Sponville"

terça-feira, 7 de junho de 2011

Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão 

tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes 

Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse
um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Manoel de Barros

sábado, 4 de junho de 2011

Imposturas intelectuais ou cientificismo exacerbado. É possível um meio termo?

À luz das palavras de Gizêlda M. Nascimento abaixo, relato nesse post por que não terminei a leitura do livro "Imposturas Intelectuais" de Alan Sokal e Jean Bricmont.
"Uma reflexão sobre o Século das Luzes, leva-nos a julgar, grosso modo, tratar-se de uma tentativa para, à luz da razão, libertar o homem livrando-o das amarras do discurso religioso e sua posição centralizadora. Libertar a humanidade de todo um corolário de valores tais como: pecado, punição e sacrifício. Retirá-lo do centro para, enfim, poder acreditar nas convicções de Leibinz de que “este é o melhor dos mundos possíveis”. O sorridente século XVIII trazia a promessa de experimentarmos a felicidade aqui, neste mundo. E o aqui não representaria mais um estágio, um espaço de provações para se alcançar a felicidade no reino de Deus. A felicidade é aqui: começa e termina no mundo dos homens iluminados pela razão. 
Ora, ao trazer a razão e, conseqüentemente, a ciência a reboque (ciência como deveria ser interpretada: isenta de ideologias) para o centro das expectativas, como proposta para uma sociedade feliz, é possível afirmar que o século das Luzes – não em sua intenção originária, mas em seus desdobramentos – foi de pouco fôlego. Neste sentido e mesmo correndo o risco de sermos julgados essencialistas e deterministas perguntamos: não estaria a sociedade humana fadada, pelas perseguições obsessivas às suas idéias, à infelicidade? Senão vejamos: a proposta iluminista ao abrir flanco para o desenvolvimento da ciência, dá, por sua vez, passagem para a organização do discurso científico. E o que vamos assistir no decorrer do século XIX (logo após ou ao lado do projeto romântico) é à procura da explicação do homem, não mais como criação divina à semelhança de Deus, mas como espécie. Eis o grande salto em termos de concepção e visão de mundo. Libertos das noções de salvação ou perdição, livramo-nos do assombroso julgamento posterior a nossa existência; estaríamos livres, então, para vivermos o ‘paraíso’ (ou o inferno) na terra." (Gizêlda M. Nascimento).
Os autores do livro "Imposturas Intelectuais" criticam de forma virulenta e, na minha opinião, até irresponsável um certo relativismo característico, segundo eles,  da ciência pós-moderna. 
O problema é que o fazem sem antes oferecer ao leitor nenhum detalhamento daquilo que eles próprios entendem por "relativismo". Sem uma definição clara e precisa do fenômeno que estão criticando, toda a crítica cai no vazio.
Interessante notar que os autores partem de uma definição, em seus próprios dizeres: grosso modo, do termo "relativismo".

Designam relativismo "qualquer filosofia que afirme que a veracidade ou falsidade de uma asserção é relativa a um indivíduo ou a um grupo social.
Penso que trata-se de uma definição senão ingênua, ideológica do termo. Uma definição mais amplamente aceita seria: "o relativismo é um movimento de pensamento que atravessa os séculos desde a antiguidade greco-romana, que indica um conjunto de doutrinas que defendem a tese de que o sentido e o valor das crenças e comportamentos dos seres humanos não têm referência absoluta transcendente." (wikipédia). Ainda segundo a wikipédia: O sucesso do relativismo cultural a partir da segunda metade do século XX, no Ocidente garantiu a primazia e a exclusividade a este sentido da palavra. Os ideólogos anti-relativismo, também usam frequentemente o termo "relativismo", mas de forma frouxa, para se referir ao historicismo, uma das características mais acusadas do nosso tempo.

Existem variantes do relativismo, notadamente um relativismo cognitivo, que afirma um ponto de vista segundo o qual "o conhecimento é o produto de uma construção e por isso mesmo não pode ser considerado como objetivo", e um relativismo cultural que afirma que essas normas e valores são únicos para cada "cultura" ou "subcultura" e que por isso não pode ser fundamentado em base objetiva.
Tomando-se o termo "objetivo", usado na definição acima do relativismo cognitivo, no sentido de "absoluto", poderia-se afirmar que "é relativista uma doutrina filosófica que recusa a aceitar o absolutismo de qualquer doutrina." 
Com efeito, o relativismo cognitivo ou epistêmico não afirma, conforme alegam os autores, que o relativista aceita que a "veracidade é relativa a um indivíduo ou grupo". Tal relativismo afirmaria outrosim que "o conhecimento é que é relativo a um indivíduo ou grupo". Óbvio porque se o conhecimento não fosse relativo, seria então absoluto, o que é inaceitável. Pois não se encontrou ainda um fundamento absoluto para o conhecimento humano. Aliás, esse é todo o problema da epistemologia atualmente, como veremos abaixo.

Mais à frente no texto os autores afirmam: "[...] não há dúvida de que a atitude relativista está em conflito com a ideia dos cientistas sobre sua própria prática." Afirmação da qual discordo. Talvez concordasse um cientista absolutista, pregando um certo cientificismo exacerbado.
Conforme sugere Gizêlda Melo do Nascimento em seu texto, a razão Iluminista, evoluindo para o cientificismo exacerbado, vai se afastando da concepção proposta por seus primeiros pensadores e, à medida que ganha espaço nos debates, vai se aproximando do centro de interesse do poder.
"Voltaire já nos punha de sobreaviso que viver no “melhor dos mundos” na Europa corresponderia a viver o inferno em outras plagas. O inferno pode ser aqui mesmo. E é exemplar o gesto do escravo ao exibir pé e mão mutilados denunciando o quanto custava, para os subjugados, a doçura do açúcar consumido pelos europeus. O ‘doce cativeiro’ exibia a sua perversão discursiva no corpo mutilado do escravo.
E aí está o ponto nevrálgico da razão iluminista; onde ela se contradiz e revela sua efemeridade. Por que vamos assistir, a partir de então, a uma pletora de correntes tradutoras de valores e práticas, alvoroçando exaustiva e obsessivamente os debates do século XIX. Darwnismo, Positivismo, Evolucionismo e tantas outras correntes desenvolvidas à luz da razão e da ciência, assumindo o palco das discussões advogando em favor do aperfeiçoamento da família humana.
Obsessões frenológicas, medições de crânios, de maxilares, de ventre: o corpo humano passando por uma frenética inspeção ao ser vasculhado, medido, dissecado a cada milímetro de sua compleição. Todo um esforço ergométrico como forma de explicar a superioridade de uns sobre os outros, para distribuir e justificar o lugar de cada um na escala das representações sociais, para assim respaldar o status quo. Assim como dantes, o desenho da pirâmide continua irretocável: no topo a elite (esta não mais eleita por Deus e sim por sua compleição física portadora de um crânio maior), na base ‘os outros’ (não mais para redimir seus pecados na terra, e sim porque portadores de deformidades, sobretudo a que se revela no crânio de menor tamanho)."
Esse cientificismo exacerbado, adubado por um relativismo moral mal compreendido, próprio da nossa era, pode ir facilmente contra os direitos humanos universais. Violado um deles e aceito socialmente, o perigo é generalizado, em primeiro lugar para a pessoa e, em seguida, para o conjunto social.
"[...] a ciência, ‘à luz da própria razão’, deixa de ser um espaço de investigação isento de julgamento para assumir a cegueira comprometida e comprometedora do discurso hegemônico. Afinada com o poder, seu discurso muda de espaço deslocando-se para o do debate ideológico. E o que em seu princípio constituía a procura da explicação da origem da humanidade com a premissa de aperfeiçoá-la e projetá-la num futuro melhor (para este homem viver para sempre no melhor dos mundos) tornou-se base para o estabelecimento de hierarquias dentro de uma escala da espécie humana. Hierarquia de classe, raça e gênero. Hierarquia e classificação constituem suas palavras de ordem. Assim procedendo, a ciência abandona de vez sua isenção e torna-se servil ao discurso ideológico. O poder sobe-lhe à cabeça."

Ora o relativismo epistêmico diz apenas que não é possível erigir uma teoria científica ao status de absoluta. Com efeito, etimologicamente, o termo "relativo" não se opõe a "universal", mas a "absoluto"; assim como o termo "relativo" não é sinônimo de "particular", que é o oposto de "universal".

Pode-se ser relativista ou absolutista quanto à razão teórica e/ou quanto à razão prática (I. Kant foi o primeiro a mostrar isso). Os autores do livro em questão referem-se exclusivamente à razão teórica (conhecimento e verdade) e não à razão prática (norma/valor). Entretanto é notável que ignorem ou omitam em seu texto que, no caso da razão teórica, pode-se ainda assumir uma postura relativista ou absolutista em relação ao conhecimento como também em relação à verdade.
Eu considero particularmente difícil ser relativista quanto à verdade, mas não quanto ao conhecimento. Aí está o problema que identifiquei no livro: os autores gastam mais de 300 páginas para demonstrar uma tese que ninguém minimamente informado aceitaria, i.e., que os relativistas são relativistas em relação à verdade. Ora, salvo por um ou outro relativista mais heterodoxo ou desinformado, e até onde eu saiba, a grande maioria, me incluindo nela, é relativista em relação ao conhecimento, mas não em relação à verdade. Que eu esteja escrevendo este texto agora, trata-se de uma verdade incondicional e eterna, ninguém que tenha me acompanhado na sua formulação poderia negar, a menos de se enganar, desconhecer ou se esquecer. Por outro lado, que o conteúdo que eu esteja escrevendo nele constitui um conhecimento, eu não recriminaria ninguém de duvidar.

Relativistas epistêmicos não acreditam que possa haver um conhecimento absoluto, ou seja, que o conhecimento possa ser fundamentado, absolutizado.
Cabe aqui uma precisão quanto ao vocabulário. O termo "fundamento" é entendido como algo que garante a validade do valor (Nietzsche). Ou seja, um fundamento é uma garantia "de direito", não apenas "de fato". Garantiria que uma coisa é a boa coisa e, ao mesmo tempo, a coisa verdadeira. Conjunção de valor e verdade.
Assim, podemos falar em "conhecimentos científicos", mas não há "verdades científicas" absolutas (Popper, tese da falsificabilidade). Há conhecimentos científicos particulares de algumas verdades, e isso ocorre porque o conhecimento só existe na norma da verdade, dada ou possível (Popper). Às vezes o cientista tem sorte, e sua teoria perdura por bastante tempo. O que faz o valor de uma teoria científica é o quanto ela se deixa bater empiricamente. Se for uma boa teoria científica, outras baterão sem sucesso, sem que se logre falsificá-la.
Há, eventualmente, até conhecimento que possa atingir o status de universal, embora ainda assim relativo, relativo ao homem, à espécie humana. Não há, entretanto, o conhecimento absoluto da verdade (apenas universal e relativo ao homem). Com efeito, o homem não é Deus. A menos que se aceite um certo humanismo kantiano transcendente. Kant fundamenta a razão no próprio homem, ou em alguma transcendência que fundamenta o homem (exegese polêmica de Kant). 
Em epistemologia, defini-se conhecimento como: uma crença verdadeira justificada. O problema da epistemologia se concentra todo no termo "justificada", da definição acima. O homem ainda não conseguiu pensar ou elaborar essa justificação de forma absoluta. Conseguirá um dia?

Para resumir, dependendo da doutrina filosófica a que se adere (Espinoza, Kant, Nietzsche etc), esses absolutismos/relativismos podem vir em par, ou em separado. Uma doutrina filosófica pode professar tanto um absolutismo teórico (epistêmico, cognitivo) quanto um absolutismo prático (normativo). Nietzsche é relativista nos dois aspectos (talvez venha daí sua fama de niilista). Kant é relativista apenas teórico (pois seu princípio "categórico universal" fundamenta a moral). Espinoza é relativista apenas prático; ele acreditava que temos acesso absoluto à verdade, é um absolutista epistêmico (quanto ao conhecimento e quanto a verdade).

Mas, voltando ao livro de Alan Sokal e Jean Bricmont, estes ao invés de adotarem o espírito luminoso de Espinoza, que poderia lhe servir de argumento, fazem prova de humor ingênuo e infantil. Seguem por uma perspectiva cientificista e formalista, sem interrogar seus pressupostos. Oferecem tantas interpretações equivocadas dos autores que analisam no livro que, para mim, este acaba se tornando contre-performant. Perdi a paciência, parei de ler.

Está claro, e os autores acima não discordariam, que a ciência nos oferece apenas aspectos parciais da natureza e do ser humano. Isso porque ela não pode penetrar profundamente dentro do núcleo de suas realidades e explicar suas causas últimas. Este conhecimento profundo sobre o homem e sobre a natureza, que dá sentido a todo o conhecimento parcial, nos fornece a metafísica, por meio de termos, conceitos e raciocínios. Mas também ele nos é oferecido pela espiritualidade, por meio de silêncios, vivências e experiências compartilhadas. Filosofia e ciência se complementam, a primeira ilumina a aplicação da segunda, como coração guia a razão. A esse propósito, ver como sabedoria e conhecimento podem ser erroneamente considerados antagônicos por grandes autores contemporâneos.

Para concluir, a sociedade dominada pela ideológica do cientificismo exacerbado é a do estado totalitário e desumano, tal como pregado por Platão. Nele a massa deve obedecer cegamente seus guardiães-filósofos. Nele não há espaço nem para a solidariedade e muito menos para a compaixão.

terça-feira, 31 de maio de 2011

A Arte de Cinzelar Palavras de Vida Através da Conversa

“Como os filólogos nos advertem, as palavras estão grávidas de significados existenciais. Nelas, os seres humanos acumularam infindáveis experiências, positivas e negativas, experiências de busca, de encontro, de certeza, de perplexidade e de mergulho no Ser. Precisamos desentranhar das palavras sua riqueza escondida” (L. Boff)

Texto de: Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
Jo. 14,15-21: Este trecho do Evangelho de João faz parte de uma longa conversa de Jesus com os seus amigos durante a Última Ceia (Jo 13 a 17).
Era uma conversa amiga, que ficou na memória do discípulo amado. Jesus, assim parece, queria prolongar ao máximo esse último encontro, momento de muita intimidade. Para João, a conversa de Jesus tem uma conotação de profundidade e trato, de certa familiaridade e intimidade.
Nesta interação Jesus-discípulos, tanto os conteúdos expressos como os aspectos relacionais ganham uma grande importância: as palavras, os gestos, o olhar, a maneira de falar, o tom da voz, os silêncios, o contexto onde acontece a conversação...; tudo isso forma parte da diversidade e riqueza da revelação de Jesus aos seus mais íntimos. Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua conversa brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida. Trata-se de um verdadeiro “testamento espiritual”
Nesta conversação Jesus não só verbaliza o que pensa, senão que também expressa o que sente. O grau de autorevelação e transparência aumenta. Esta longa conversa é uma oportunidade única para os discípulos conhecerem mais profundamente o Mestre; ao mesmo tempo lhes é dado a chance de se conectarem com o significado nem sempre consciente daquilo que Jesus quer dizer.
Nesta maneira de conversar, Jesus se manifesta tal e como é, verbalizando aspectos de si mesmo muito íntimos e pessoais. A experiência do “nós” revela um significa especial de comunhão e entrega.
A conversação constitui, portanto, o núcleo diferencial de qualidade de trato próximo e fraterno daqueles que, além de viverem juntos, compartilham a vida com um projeto comum.
O mesmo acontece hoje. Há conversa e conversa. Há conversa superficial que gasta palavras à toa e revela o vazio das pessoas. E há conversa que vai fundo no coração e fica na memória. Todos nós, de vez em quando, temos esses momentos de convivência amiga, que dilatam o coração e vão ser força na hora das dificuldades. Ajudam a ter confiança e a vencer o medo.
Conversar constitui uma das experiências humanas mais antigas e configuradoras de nosso ser. Ela não se reduz a um mero intercâmbio de palavras; é um processo essencialmente ativo, inerente à nossa natu-reza relacional, cuja finalidade última é viver a experiência do encontro.
Conversar é uma das aprendizagens vitais que não tem data de vencimento.
A arte da conversação é um caminho pedagógico, um processo gradual que requer de nós uma capacidade de escuta, de acolher e deixar-nos tocar pelo que o outro é, não só pelo que diz; uma capacidade de olhar com profundidade para reconhecer uma história santa, um caminho de salvação. É reconhecer no outro o que há de verdadeiro, bom, formoso, e descobrir como o dinamismo de Deus atua no coração dele. É ajudá-lo a descobrir, na trama de sua vida, as motivações profundas que o levam a ser e a agir de uma maneira muito pessoal.
Uma “conversação”, carregada de inspiração e sentido, brota de um coração apaixonado pelo bem do outro, de querer ajudá-lo na direção de seu fim último, de comprometê-lo intensamente em seu processo de crescimento e maturação de uma vida engajada.
Para que a pessoa possa abrir seu interior, ela deve sentir-se envolvida pelo grau de altruísmo e acolhida que o outro pode lhe manifestar. Tal comunicação centra-se no universo original da pessoa, acessado fundamentalmente através de uma comunhão de sentimentos. Trata-se de uma empatia a serviço de uma relação de ajuda segundo o critério do Evangelho. A conversação deixa, então, transparecer as convicções, os sonhos, os sentimentos... da pessoa. “As palavras me escondem sem cuidado” (Manoel Barros)
A conversação é uma experiência profundamente humana de proximidade, de conhecimento, de inter-câmbio, de ternura... um encontro entre caminhantes que vão compartilhando histórias de vida, esperanças e frustrações, vontade de transcender... Na conversação, o que importa é a pessoa do outro e não os problemas que apresenta...; ela é o lugar privilegiado de encontro e descoberta misteriosa do outro.
Conversar” e “converter-se”, etimologicamente, vem da mesma raiz. Em seu sentido mais radical e profundo “conversar” é “converter-se” ao mistério do outro, é converter-se à alteridade.
Sair dos corredores do próprio claustro interior e de seus mecanismos de defesa para converter-se em um servidor do outro, com a arma mais humana, mais sutil, mais imediata e universal, mais iluminadora e mais reveladora da própria maturidade: a palavra.
A conversação nos liberta da solidão e do fechamento, fazendo-nos crescer na transparência. As inúme-ras possibilidades de conversar são encontros que nos reconciliam com a vida, nos movem a crescer e a sair de nosso egocentrismo. Ela nos permite sentir que formamos parte da vida de outros e nos ajuda a levantar-nos quando as perdas, os fracassos, as enfermidades... tornam difícil nosso caminhar.
Conversar é uma das vias privilegiadas que temos para fazer e fazer-nos sentir que nossa vida é habitada por outros, que grande parte de nossa felicidade está no fato de sermos capazes de nos fazer presentes na vida dos outros e, ao mesmo tempo, deixar que estes se aninhem em nosso interior.
Reconhecimento, pertença, celebração da vida; sentir-se capazes de pensar autonomamente, desenvolver a própria individualidade, ser aceito e querido a partir da própria originalidade.... Cada conversação tem seu porquê, seu ritmo e seu processo.
Para chegar a conversações mais profundas e íntimas precisamos percorrer o caminho que se inicia no cotidiano e no aparentemente superficial. Encontrar-nos com os outros é uma experiência que requer seu tempo, seu espaço, seu ritmo. Nossa natureza relacional continuamente nos oferece oportunidades para conversar; depende de nós fazê-las banais ou convertê-las em experiência de vida.

Textos bíblicos: Jo. 3,1-21 2Tim. 1,6-14 Jo. 4,1-12
Na oração: O protagonista principal da conversa é o Espírito, que
                   gera em nosso interior palavras de vida e criatividade.
- Pela conversa a pessoa manifesta quem ela é. “Onde está
sua conversa, aí está seu coração”.
- Quais são suas conversas? Elas animam os outros, eleva-os, “aquecem seus corações?...
- Aguce seus sentidos, abra o coração; há tantos que não podem mais esperar, pois ansiosos aguardam uma
presença que acolha e uma palavra que os anime. 


Cinzelar
v.t. Lavrar a cinzel; esculpir.
Fig. Trabalhar com extrema precisão; aprimorar, apurar.