Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
"
Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

sábado, 11 de junho de 2011

Até que ponto a informação nos revela a verdade?

Resenha do Capítulo "A verdade e nós" do livro “Valor e verdade: estudos cínicos”, de André Comte-Sponville.
O livro reúne “doze estudos que têm em comum versar sobre um mesmo objeto, que é a relação entre valor e verdade”.

O autor estrutura seu texto em torno das três perguntas fundamentais com as quais I. Kant define a filosofia:
  1. "O que podemos conhecer?" questionamento respondido pelas disciplinas: epistemologia e ontologia. Esta última pergunta: "o que há? para podermos conhecer"; 
  2. "O que devemos fazer?" objeto de estudo da filosofia moral (ética); e 
  3. "O que podemos esperar?" problema refletido pela metafísica e pela espiritualidade. A metafísica o aborda por meio de termos, conceitos e raciocínios. A espiritualidade por meio de experiências e vivências às vezes compartilhadas. 
À luz desse esquema teórico, Comte-Sponvile analisa a nossa modernidade.

O que é a verdade para o cientista? se para o filósofo a resposta pode variar, para o cientista a verdade é, no mínimo, tudo aquilo que se sabe cientificamente hoje; mesmo que o futuro a revele sempre incompleta e as vezes equivocada.

Nossa modernidade teórica (o que podemos conhecer?)
Aprendemos a distinguir nossos conhecimentos (relativos, parciais, provisórios) da verdade (eterna e absoluta). O próprio progresso do conhecimento e da lucidez epistemológica nos desiludiu desse ideal. A identidade entre o ser o e conhecimento nos é vedada - não apenas de fato, como de direito e definitivamente - pelas próprias condições que tornam esse conhecimento possível. O pensamento só pode se identificar com seu objeto na medida em que primeiro o constitui como objeto (de conhecimento), o qual não é o ser. O real é velado ou distante, embora estejamos dentro dele. Lição da física quântica (Bohr, Heisenberg), bem como da epistemologia contemporânea (Popper). Mesmo antes, Montaigne e Pascal já diziam: "Não temos nenhuma comunicação com o ser". Nunca conheceremos o verdadeiro a não ser indiretamente, pela mediação do falso, que às vezes sabemos detectar. Nenhum contato absoluto com o absoluto: o ser nos contém, mas nem por isso saberíamos contê-lo adequadamente.
Quer isso dizer que não há verdade, como às vezes ouve-se falar? Claro que não: se nada fosse verdade, não seria verdade que não há verdade, e é por isso que a proposição "não há verdade" se auto-destroi. A verdade é o que diferencia nossos conhecimentos de nossas convicções ou opiniões. Kant separava três ordens de pensamento. O "saber":  como um pensamento subjetiva e objetivamente suficientes; de uma "convicção": um pensamento subjetivamente suficiente mas objetivamente insuficiente; de uma "opinião": um pensamento tanto subjetiva quanto objetivamente insuficientes.
Postulado da razão teórica, que garante algum racionalismo: há verdade já que há conhecimento. Só há conhecimento na norma da verdade dada ou possível.
Com isso não se altera a concepção semântica da verdade. Como diria Tarski, a verdade de uma proposição consiste sempre em sua correspondência com a realidade. "A proposição 'a neve é branca' só é verdadeira se a neve é branca"; mas isso não altera o estatuto ou o alcance ontológico do conhecimento (o ser, para ele, está fora de alcance, ou só poderia ser atingido indireta e aproximadamente). Pode haver verdade em nossos conhecimentos, mas nossos conhecimentos não são a verdade, nem poderiam identificar-se com ela. Este é o abismo que funda nossa modernidade teórica.

Nossa modernidade prática (o que devemos fazer?)
Separação entre valor e verdade. Classicamente os filósofos consideravam que o verdadeiro e o bem andavam juntos: que o verdadeiro era o bom e o bom era o verdadeiro.
Aristóteles (em Metafísica): "É porque algo é bom que este algo nos parece desejável, em vez de este algo nos parecer bom porque o desejamos: o princípio é o pensamento; ora, o intelecto é movido pelo inteligível..." Como desejaríamos o que não conhecemos? E por que desejaríamos conhecer se a verdade não fosse boa?
"Tudo o que é, é bom", dirá Santo Agostinho; "o bem e o ser são uma única e mesma coisa", dirá são Tomás; e o mal nada mais é que uma privação ou que um ser menor. Deus é a verdade que faz norma: graças ao que nossos valores são verdadeiros, graças ao que nossas verdades valem. Isso durou uns dois mil anos, e fez uma civilização - a nossa civilização judeo-cristã.
Descristianizando-se o Ocidente, foi necessário porém procurar outra coisa. O que primeiro se encontrou foram deuses substitutos: a ciência depois a história, ou antes, os que diziam seguí-la pretenderam assim conjungir por sua vez o verdadeiro e o bem, o ser e o dever-ser, a verdade e o valor. Daí essa religião da Ciência, que foi o cientificismo, ou essa religião da História, que foi o marxismo.
Dizia Hegel: "O mundo real é tal como deve ser", "o verdadeiro bem, a razão divina universal é também a potência apta a se realizar. Esse bem, essa razão, sob a sua representação mais concreta, é Deus".
Esses ídolos não existem mais. Quanto mais as ciências progridem, mais parece que eles são incapazes de resolver qualquer problema normativo. As ciências não comandam; as ciências não julgam. As ciências não poderiam portanto substituir nem a religião, nem a moral, nem a filosofia. Incapazes que são de nos prescrever o que fazer. Assim as ciências ou a história não nos dizem mais sobre o bem. Conhecer não é mais julgar; julgar não é mais conhecer. Os conhecimentos cessaram de erigir-se em norma; os valores cessaram de ser verdadeiros. Nossos valores não se fundam mais em nossos saberes. Em que fundá-los então? No desejo. É preciso inverter a proposição de Aristóteles: "uma coisa nos parece boa porque nós a desejamos, e não o contrário: só desejamos porque ela nos parece boa" (Espinosa). O Verdadeiro não é o bem: nenhum bem é verdadeiro. É mais um abismo que funda nossa modernidade prática. O que vale não é o que conhecemos, mas o que desejamos, queremos e amamos. "A justiça não existe, é por isso que é preciso fazê-la" (Alan).

Nossa modernidade espiritual (o que podemos esperar?)
Amar a Deus, se nele cremos, era amar a Verdade que nos amava - e a verdade era, assim, tanto mais amável quanto a sabíamos infinitamente amante! Mas eis que a verdade, sem se abolir, cessa de se fazer passar por amante, em outra palavras, Deus morre. Eis que nos anunciam, não que não há mais verdade, mas que ela não nos ama, que é indiferente a tudo, isto é, a ela própria! Divórcio entre amor e verdade. Conhecer não é amar; amar não é conhecer. Quantas verdades odiosas! Quantos erros amáveis! modernidade espiritual: nem mesmo a verdade é Deus!
Devemos por isso nos afogar no niilismo e na sofística? Somos capazes de amar a verdade apesar de tudo, ainda que ela não corresponda às nossas esperanças. É possível que a verdade seja triste?
Ainda que ela não nos corresponda, saberemos aprender a amá-la sem retorno, de um amor desinteressado, amar em pura perda, a amar solitariamente, desesperadamente (sem esperar)?
Não que seja preferível. Quem não prefere ser amado? Quem não gostaria que esse amor fosse a própria verdade? Desde quando é preciso ser amado para aceitar amar? O amor é uma alegria que acompanha a ideia de uma causa externa (Espinosa), e a única: a verdade só é alegre para quem ama conhecer, só é triste para quem fracassa em amar.
Não há portanto que escolher entre o conhecimento e o amor. Amar e conhecer são duas coisas diferentes, mas não incompatíveis nem separadas: o desejo de verdade pode encontrar a verdade do desejo. O conhecimento do amor pode confortar o amor ao conhecimento. Seria preferível que nos bastasse amar para conhecer ou conhecer para amar. É por isso que os dois são necessários, um não podendo substituir o outro e não podendo se unirem de outro modo que em nós, contanto que amemos o verdadeiro, contanto que conheçamos o amor. Que isso seja pouco, que esperávamos outra coisa (a conjunção do verdadeiro e do bem, da verdade e do amor)... mas não se trata de esperar, mas de viver, e azar o nosso se é difícil. Precisamos de coragem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que você acha?