Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
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Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

sábado, 4 de junho de 2011

Imposturas intelectuais ou cientificismo exacerbado. É possível um meio termo?

À luz das palavras de Gizêlda M. Nascimento abaixo, relato nesse post por que não terminei a leitura do livro "Imposturas Intelectuais" de Alan Sokal e Jean Bricmont.
"Uma reflexão sobre o Século das Luzes, leva-nos a julgar, grosso modo, tratar-se de uma tentativa para, à luz da razão, libertar o homem livrando-o das amarras do discurso religioso e sua posição centralizadora. Libertar a humanidade de todo um corolário de valores tais como: pecado, punição e sacrifício. Retirá-lo do centro para, enfim, poder acreditar nas convicções de Leibinz de que “este é o melhor dos mundos possíveis”. O sorridente século XVIII trazia a promessa de experimentarmos a felicidade aqui, neste mundo. E o aqui não representaria mais um estágio, um espaço de provações para se alcançar a felicidade no reino de Deus. A felicidade é aqui: começa e termina no mundo dos homens iluminados pela razão. 
Ora, ao trazer a razão e, conseqüentemente, a ciência a reboque (ciência como deveria ser interpretada: isenta de ideologias) para o centro das expectativas, como proposta para uma sociedade feliz, é possível afirmar que o século das Luzes – não em sua intenção originária, mas em seus desdobramentos – foi de pouco fôlego. Neste sentido e mesmo correndo o risco de sermos julgados essencialistas e deterministas perguntamos: não estaria a sociedade humana fadada, pelas perseguições obsessivas às suas idéias, à infelicidade? Senão vejamos: a proposta iluminista ao abrir flanco para o desenvolvimento da ciência, dá, por sua vez, passagem para a organização do discurso científico. E o que vamos assistir no decorrer do século XIX (logo após ou ao lado do projeto romântico) é à procura da explicação do homem, não mais como criação divina à semelhança de Deus, mas como espécie. Eis o grande salto em termos de concepção e visão de mundo. Libertos das noções de salvação ou perdição, livramo-nos do assombroso julgamento posterior a nossa existência; estaríamos livres, então, para vivermos o ‘paraíso’ (ou o inferno) na terra." (Gizêlda M. Nascimento).
Os autores do livro "Imposturas Intelectuais" criticam de forma virulenta e, na minha opinião, até irresponsável um certo relativismo característico, segundo eles,  da ciência pós-moderna. 
O problema é que o fazem sem antes oferecer ao leitor nenhum detalhamento daquilo que eles próprios entendem por "relativismo". Sem uma definição clara e precisa do fenômeno que estão criticando, toda a crítica cai no vazio.
Interessante notar que os autores partem de uma definição, em seus próprios dizeres: grosso modo, do termo "relativismo".

Designam relativismo "qualquer filosofia que afirme que a veracidade ou falsidade de uma asserção é relativa a um indivíduo ou a um grupo social.
Penso que trata-se de uma definição senão ingênua, ideológica do termo. Uma definição mais amplamente aceita seria: "o relativismo é um movimento de pensamento que atravessa os séculos desde a antiguidade greco-romana, que indica um conjunto de doutrinas que defendem a tese de que o sentido e o valor das crenças e comportamentos dos seres humanos não têm referência absoluta transcendente." (wikipédia). Ainda segundo a wikipédia: O sucesso do relativismo cultural a partir da segunda metade do século XX, no Ocidente garantiu a primazia e a exclusividade a este sentido da palavra. Os ideólogos anti-relativismo, também usam frequentemente o termo "relativismo", mas de forma frouxa, para se referir ao historicismo, uma das características mais acusadas do nosso tempo.

Existem variantes do relativismo, notadamente um relativismo cognitivo, que afirma um ponto de vista segundo o qual "o conhecimento é o produto de uma construção e por isso mesmo não pode ser considerado como objetivo", e um relativismo cultural que afirma que essas normas e valores são únicos para cada "cultura" ou "subcultura" e que por isso não pode ser fundamentado em base objetiva.
Tomando-se o termo "objetivo", usado na definição acima do relativismo cognitivo, no sentido de "absoluto", poderia-se afirmar que "é relativista uma doutrina filosófica que recusa a aceitar o absolutismo de qualquer doutrina." 
Com efeito, o relativismo cognitivo ou epistêmico não afirma, conforme alegam os autores, que o relativista aceita que a "veracidade é relativa a um indivíduo ou grupo". Tal relativismo afirmaria outrosim que "o conhecimento é que é relativo a um indivíduo ou grupo". Óbvio porque se o conhecimento não fosse relativo, seria então absoluto, o que é inaceitável. Pois não se encontrou ainda um fundamento absoluto para o conhecimento humano. Aliás, esse é todo o problema da epistemologia atualmente, como veremos abaixo.

Mais à frente no texto os autores afirmam: "[...] não há dúvida de que a atitude relativista está em conflito com a ideia dos cientistas sobre sua própria prática." Afirmação da qual discordo. Talvez concordasse um cientista absolutista, pregando um certo cientificismo exacerbado.
Conforme sugere Gizêlda Melo do Nascimento em seu texto, a razão Iluminista, evoluindo para o cientificismo exacerbado, vai se afastando da concepção proposta por seus primeiros pensadores e, à medida que ganha espaço nos debates, vai se aproximando do centro de interesse do poder.
"Voltaire já nos punha de sobreaviso que viver no “melhor dos mundos” na Europa corresponderia a viver o inferno em outras plagas. O inferno pode ser aqui mesmo. E é exemplar o gesto do escravo ao exibir pé e mão mutilados denunciando o quanto custava, para os subjugados, a doçura do açúcar consumido pelos europeus. O ‘doce cativeiro’ exibia a sua perversão discursiva no corpo mutilado do escravo.
E aí está o ponto nevrálgico da razão iluminista; onde ela se contradiz e revela sua efemeridade. Por que vamos assistir, a partir de então, a uma pletora de correntes tradutoras de valores e práticas, alvoroçando exaustiva e obsessivamente os debates do século XIX. Darwnismo, Positivismo, Evolucionismo e tantas outras correntes desenvolvidas à luz da razão e da ciência, assumindo o palco das discussões advogando em favor do aperfeiçoamento da família humana.
Obsessões frenológicas, medições de crânios, de maxilares, de ventre: o corpo humano passando por uma frenética inspeção ao ser vasculhado, medido, dissecado a cada milímetro de sua compleição. Todo um esforço ergométrico como forma de explicar a superioridade de uns sobre os outros, para distribuir e justificar o lugar de cada um na escala das representações sociais, para assim respaldar o status quo. Assim como dantes, o desenho da pirâmide continua irretocável: no topo a elite (esta não mais eleita por Deus e sim por sua compleição física portadora de um crânio maior), na base ‘os outros’ (não mais para redimir seus pecados na terra, e sim porque portadores de deformidades, sobretudo a que se revela no crânio de menor tamanho)."
Esse cientificismo exacerbado, adubado por um relativismo moral mal compreendido, próprio da nossa era, pode ir facilmente contra os direitos humanos universais. Violado um deles e aceito socialmente, o perigo é generalizado, em primeiro lugar para a pessoa e, em seguida, para o conjunto social.
"[...] a ciência, ‘à luz da própria razão’, deixa de ser um espaço de investigação isento de julgamento para assumir a cegueira comprometida e comprometedora do discurso hegemônico. Afinada com o poder, seu discurso muda de espaço deslocando-se para o do debate ideológico. E o que em seu princípio constituía a procura da explicação da origem da humanidade com a premissa de aperfeiçoá-la e projetá-la num futuro melhor (para este homem viver para sempre no melhor dos mundos) tornou-se base para o estabelecimento de hierarquias dentro de uma escala da espécie humana. Hierarquia de classe, raça e gênero. Hierarquia e classificação constituem suas palavras de ordem. Assim procedendo, a ciência abandona de vez sua isenção e torna-se servil ao discurso ideológico. O poder sobe-lhe à cabeça."

Ora o relativismo epistêmico diz apenas que não é possível erigir uma teoria científica ao status de absoluta. Com efeito, etimologicamente, o termo "relativo" não se opõe a "universal", mas a "absoluto"; assim como o termo "relativo" não é sinônimo de "particular", que é o oposto de "universal".

Pode-se ser relativista ou absolutista quanto à razão teórica e/ou quanto à razão prática (I. Kant foi o primeiro a mostrar isso). Os autores do livro em questão referem-se exclusivamente à razão teórica (conhecimento e verdade) e não à razão prática (norma/valor). Entretanto é notável que ignorem ou omitam em seu texto que, no caso da razão teórica, pode-se ainda assumir uma postura relativista ou absolutista em relação ao conhecimento como também em relação à verdade.
Eu considero particularmente difícil ser relativista quanto à verdade, mas não quanto ao conhecimento. Aí está o problema que identifiquei no livro: os autores gastam mais de 300 páginas para demonstrar uma tese que ninguém minimamente informado aceitaria, i.e., que os relativistas são relativistas em relação à verdade. Ora, salvo por um ou outro relativista mais heterodoxo ou desinformado, e até onde eu saiba, a grande maioria, me incluindo nela, é relativista em relação ao conhecimento, mas não em relação à verdade. Que eu esteja escrevendo este texto agora, trata-se de uma verdade incondicional e eterna, ninguém que tenha me acompanhado na sua formulação poderia negar, a menos de se enganar, desconhecer ou se esquecer. Por outro lado, que o conteúdo que eu esteja escrevendo nele constitui um conhecimento, eu não recriminaria ninguém de duvidar.

Relativistas epistêmicos não acreditam que possa haver um conhecimento absoluto, ou seja, que o conhecimento possa ser fundamentado, absolutizado.
Cabe aqui uma precisão quanto ao vocabulário. O termo "fundamento" é entendido como algo que garante a validade do valor (Nietzsche). Ou seja, um fundamento é uma garantia "de direito", não apenas "de fato". Garantiria que uma coisa é a boa coisa e, ao mesmo tempo, a coisa verdadeira. Conjunção de valor e verdade.
Assim, podemos falar em "conhecimentos científicos", mas não há "verdades científicas" absolutas (Popper, tese da falsificabilidade). Há conhecimentos científicos particulares de algumas verdades, e isso ocorre porque o conhecimento só existe na norma da verdade, dada ou possível (Popper). Às vezes o cientista tem sorte, e sua teoria perdura por bastante tempo. O que faz o valor de uma teoria científica é o quanto ela se deixa bater empiricamente. Se for uma boa teoria científica, outras baterão sem sucesso, sem que se logre falsificá-la.
Há, eventualmente, até conhecimento que possa atingir o status de universal, embora ainda assim relativo, relativo ao homem, à espécie humana. Não há, entretanto, o conhecimento absoluto da verdade (apenas universal e relativo ao homem). Com efeito, o homem não é Deus. A menos que se aceite um certo humanismo kantiano transcendente. Kant fundamenta a razão no próprio homem, ou em alguma transcendência que fundamenta o homem (exegese polêmica de Kant). 
Em epistemologia, defini-se conhecimento como: uma crença verdadeira justificada. O problema da epistemologia se concentra todo no termo "justificada", da definição acima. O homem ainda não conseguiu pensar ou elaborar essa justificação de forma absoluta. Conseguirá um dia?

Para resumir, dependendo da doutrina filosófica a que se adere (Espinoza, Kant, Nietzsche etc), esses absolutismos/relativismos podem vir em par, ou em separado. Uma doutrina filosófica pode professar tanto um absolutismo teórico (epistêmico, cognitivo) quanto um absolutismo prático (normativo). Nietzsche é relativista nos dois aspectos (talvez venha daí sua fama de niilista). Kant é relativista apenas teórico (pois seu princípio "categórico universal" fundamenta a moral). Espinoza é relativista apenas prático; ele acreditava que temos acesso absoluto à verdade, é um absolutista epistêmico (quanto ao conhecimento e quanto a verdade).

Mas, voltando ao livro de Alan Sokal e Jean Bricmont, estes ao invés de adotarem o espírito luminoso de Espinoza, que poderia lhe servir de argumento, fazem prova de humor ingênuo e infantil. Seguem por uma perspectiva cientificista e formalista, sem interrogar seus pressupostos. Oferecem tantas interpretações equivocadas dos autores que analisam no livro que, para mim, este acaba se tornando contre-performant. Perdi a paciência, parei de ler.

Está claro, e os autores acima não discordariam, que a ciência nos oferece apenas aspectos parciais da natureza e do ser humano. Isso porque ela não pode penetrar profundamente dentro do núcleo de suas realidades e explicar suas causas últimas. Este conhecimento profundo sobre o homem e sobre a natureza, que dá sentido a todo o conhecimento parcial, nos fornece a metafísica, por meio de termos, conceitos e raciocínios. Mas também ele nos é oferecido pela espiritualidade, por meio de silêncios, vivências e experiências compartilhadas. Filosofia e ciência se complementam, a primeira ilumina a aplicação da segunda, como coração guia a razão. A esse propósito, ver como sabedoria e conhecimento podem ser erroneamente considerados antagônicos por grandes autores contemporâneos.

Para concluir, a sociedade dominada pela ideológica do cientificismo exacerbado é a do estado totalitário e desumano, tal como pregado por Platão. Nele a massa deve obedecer cegamente seus guardiães-filósofos. Nele não há espaço nem para a solidariedade e muito menos para a compaixão.

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