Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a filosofia é capaz de responder...
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Como os gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido. Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda de uma força superior." (Luc Ferry)

terça-feira, 31 de maio de 2011

A Arte de Cinzelar Palavras de Vida Através da Conversa

“Como os filólogos nos advertem, as palavras estão grávidas de significados existenciais. Nelas, os seres humanos acumularam infindáveis experiências, positivas e negativas, experiências de busca, de encontro, de certeza, de perplexidade e de mergulho no Ser. Precisamos desentranhar das palavras sua riqueza escondida” (L. Boff)

Texto de: Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
Jo. 14,15-21: Este trecho do Evangelho de João faz parte de uma longa conversa de Jesus com os seus amigos durante a Última Ceia (Jo 13 a 17).
Era uma conversa amiga, que ficou na memória do discípulo amado. Jesus, assim parece, queria prolongar ao máximo esse último encontro, momento de muita intimidade. Para João, a conversa de Jesus tem uma conotação de profundidade e trato, de certa familiaridade e intimidade.
Nesta interação Jesus-discípulos, tanto os conteúdos expressos como os aspectos relacionais ganham uma grande importância: as palavras, os gestos, o olhar, a maneira de falar, o tom da voz, os silêncios, o contexto onde acontece a conversação...; tudo isso forma parte da diversidade e riqueza da revelação de Jesus aos seus mais íntimos. Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua conversa brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida. Trata-se de um verdadeiro “testamento espiritual”
Nesta conversação Jesus não só verbaliza o que pensa, senão que também expressa o que sente. O grau de autorevelação e transparência aumenta. Esta longa conversa é uma oportunidade única para os discípulos conhecerem mais profundamente o Mestre; ao mesmo tempo lhes é dado a chance de se conectarem com o significado nem sempre consciente daquilo que Jesus quer dizer.
Nesta maneira de conversar, Jesus se manifesta tal e como é, verbalizando aspectos de si mesmo muito íntimos e pessoais. A experiência do “nós” revela um significa especial de comunhão e entrega.
A conversação constitui, portanto, o núcleo diferencial de qualidade de trato próximo e fraterno daqueles que, além de viverem juntos, compartilham a vida com um projeto comum.
O mesmo acontece hoje. Há conversa e conversa. Há conversa superficial que gasta palavras à toa e revela o vazio das pessoas. E há conversa que vai fundo no coração e fica na memória. Todos nós, de vez em quando, temos esses momentos de convivência amiga, que dilatam o coração e vão ser força na hora das dificuldades. Ajudam a ter confiança e a vencer o medo.
Conversar constitui uma das experiências humanas mais antigas e configuradoras de nosso ser. Ela não se reduz a um mero intercâmbio de palavras; é um processo essencialmente ativo, inerente à nossa natu-reza relacional, cuja finalidade última é viver a experiência do encontro.
Conversar é uma das aprendizagens vitais que não tem data de vencimento.
A arte da conversação é um caminho pedagógico, um processo gradual que requer de nós uma capacidade de escuta, de acolher e deixar-nos tocar pelo que o outro é, não só pelo que diz; uma capacidade de olhar com profundidade para reconhecer uma história santa, um caminho de salvação. É reconhecer no outro o que há de verdadeiro, bom, formoso, e descobrir como o dinamismo de Deus atua no coração dele. É ajudá-lo a descobrir, na trama de sua vida, as motivações profundas que o levam a ser e a agir de uma maneira muito pessoal.
Uma “conversação”, carregada de inspiração e sentido, brota de um coração apaixonado pelo bem do outro, de querer ajudá-lo na direção de seu fim último, de comprometê-lo intensamente em seu processo de crescimento e maturação de uma vida engajada.
Para que a pessoa possa abrir seu interior, ela deve sentir-se envolvida pelo grau de altruísmo e acolhida que o outro pode lhe manifestar. Tal comunicação centra-se no universo original da pessoa, acessado fundamentalmente através de uma comunhão de sentimentos. Trata-se de uma empatia a serviço de uma relação de ajuda segundo o critério do Evangelho. A conversação deixa, então, transparecer as convicções, os sonhos, os sentimentos... da pessoa. “As palavras me escondem sem cuidado” (Manoel Barros)
A conversação é uma experiência profundamente humana de proximidade, de conhecimento, de inter-câmbio, de ternura... um encontro entre caminhantes que vão compartilhando histórias de vida, esperanças e frustrações, vontade de transcender... Na conversação, o que importa é a pessoa do outro e não os problemas que apresenta...; ela é o lugar privilegiado de encontro e descoberta misteriosa do outro.
Conversar” e “converter-se”, etimologicamente, vem da mesma raiz. Em seu sentido mais radical e profundo “conversar” é “converter-se” ao mistério do outro, é converter-se à alteridade.
Sair dos corredores do próprio claustro interior e de seus mecanismos de defesa para converter-se em um servidor do outro, com a arma mais humana, mais sutil, mais imediata e universal, mais iluminadora e mais reveladora da própria maturidade: a palavra.
A conversação nos liberta da solidão e do fechamento, fazendo-nos crescer na transparência. As inúme-ras possibilidades de conversar são encontros que nos reconciliam com a vida, nos movem a crescer e a sair de nosso egocentrismo. Ela nos permite sentir que formamos parte da vida de outros e nos ajuda a levantar-nos quando as perdas, os fracassos, as enfermidades... tornam difícil nosso caminhar.
Conversar é uma das vias privilegiadas que temos para fazer e fazer-nos sentir que nossa vida é habitada por outros, que grande parte de nossa felicidade está no fato de sermos capazes de nos fazer presentes na vida dos outros e, ao mesmo tempo, deixar que estes se aninhem em nosso interior.
Reconhecimento, pertença, celebração da vida; sentir-se capazes de pensar autonomamente, desenvolver a própria individualidade, ser aceito e querido a partir da própria originalidade.... Cada conversação tem seu porquê, seu ritmo e seu processo.
Para chegar a conversações mais profundas e íntimas precisamos percorrer o caminho que se inicia no cotidiano e no aparentemente superficial. Encontrar-nos com os outros é uma experiência que requer seu tempo, seu espaço, seu ritmo. Nossa natureza relacional continuamente nos oferece oportunidades para conversar; depende de nós fazê-las banais ou convertê-las em experiência de vida.

Textos bíblicos: Jo. 3,1-21 2Tim. 1,6-14 Jo. 4,1-12
Na oração: O protagonista principal da conversa é o Espírito, que
                   gera em nosso interior palavras de vida e criatividade.
- Pela conversa a pessoa manifesta quem ela é. “Onde está
sua conversa, aí está seu coração”.
- Quais são suas conversas? Elas animam os outros, eleva-os, “aquecem seus corações?...
- Aguce seus sentidos, abra o coração; há tantos que não podem mais esperar, pois ansiosos aguardam uma
presença que acolha e uma palavra que os anime. 


Cinzelar
v.t. Lavrar a cinzel; esculpir.
Fig. Trabalhar com extrema precisão; aprimorar, apurar.

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